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A onda das femtechs: um novo capítulo na história da saúde sexual feminina?

Em entrevista, Marina Ratton e Marília Ponte, da Feel, compartilham sua percepção sobre as femtechs e o mercado de saúde sexual feminina.

Paola Costa
5 minutos

De forma simplificada, femtechs são startups que desenvolvem produtos e serviços voltados para a saúde e o bem-estar da população feminina. Essas soluções abrangem um amplo espectro de demandas, como questões ginecológicas, cardiológicas, neurológicas, gravidez, saúde sexual, saúde do sistema reprodutivo, oncologia, entre outras. O FemTech Landscape Report 2021 estimou que esse mercado, no âmbito mundial, deve chegar a US$ 1,186 trilhão em 2027. Apesar do potencial das femtechs, ainda existe muito espaço neste mercado. No Brasil, o Sebrae aponta que apenas 3% dos investimentos em saúde digital são destinados às femtechs.

Dentre essas soluções voltadas para a saúde feminina, destacamos o mercado de saúde sexual. De acordo com o Allied Market Research, esse segmento registrou mundialmente uma movimentação de US$ 78 bilhões em 2020, e estima-se que, até 2027, ele chegue a US$ 108 bilhões. O mesmo ocorre no Brasil, onde esse mercado tem se mostrado igualmente promissor. Um levantamento da Cortex Intelligence indicou que o país alcançou um recorde em 2022, atingindo 1.068 novas empresas voltadas para a saúde sexual. Esse número representou uma alta de 34,7% em relação a 2021, trazendo um reflexo de como as questões de saúde sexual têm ganhado fôlego.

Foi dentro desse panorama que em 2020 a Lilit femtech especializada em produtos voltados para a sexualidade feminina, como vibradores – foi fundada pela Marília Ponte, enquanto que a Feel startup de produtos focados na intimidade feminina, como lubrificantes – foi fundada pela Marina Ratton. Em 2022, sob o entendimento de que elas ofereciam soluções complementares, as femtechs anunciaram um movimento de fusão e no mesmo ano captaram R$ 750 mil em uma rodada que foi liderada pelo Sororitê, que reúne investidoras anjo na América Latina com o intuito de apoiar empresas cujas fundadoras são mulheres. Em entrevista exclusiva, elas compartilham o espaço que enxergaram nesse mercado, além dos desafios existentes no Brasil quando falamos em saúde sexual feminina.

Antes da fusão, Marília conta que a Lilit surgiu com o olhar voltado para a desigualdade do prazer nas relações. Ela aponta que “quando falamos das dores, desconfortos e falta de prazer na intimidade na sexualidade feminina, que são questões de saúde, em geral a mulher é muito pouco ouvida”. Ao pesquisar sobre a experiência feminina na compra de um vibrador, Marília constatou que o sentimento predominante era o de frustração: “a compra online era desconfortável porque a mulher não sabia como esse produto iria chegar em casa, e a compra presencial também era vista com constrangimento”. Nesse sentido, a empreendedora criou um vibrador com um modelo simples e um conteúdo esclarecedor sobre sexualidade, com a missão de melhorar como as pessoas conversam sobre intimidade e a forma como esses produtos são apresentados.

Enquanto isso, Marina conta que a Feel nasceu com premissas muito semelhantes às da Lilit, focada em investigar a sexualidade feminina. A fundadora reitera que o Brasil é visto como um país sexualizado, só que, ao adentrar na vida real, nos deparamos com uma realidade imbuída de estigmas e de uma dificuldade latente em falar sobre a saúde sexual e o prazer feminino. Marina levanta pesquisas que indicam que 70% das mulheres não sentem prazer em uma relação sexual e que 80% delas já sentiram ou sentem desconforto frequente nas relações. Essas são algumas das questões que ela entende que são invisibilizadas, em contradição ao estereótipo do país sexualizado. A partir de diversas pesquisas colocando a experiência feminina como foco, Marina conta que a empresa desenvolveu um lubrificante para atender de fato essa jornada da saúde íntima da mulher.

A inovação de fazer o básico e o desafio do convencimento

Ambas as fundadoras entendem que o mercado de saúde sexual feminino ainda é muito desassistido e inexplorado, de forma que, segundo Marília, “fazer o básico já é uma grande inovação”. Em congruência a essa afirmação, Marina aponta que nesse mercado a questão principal não é a tecnologia em si, mas sim a escuta sobre as dores e demandas da população feminina.

Quanto aos desafios desse mercado, Marília entende que o primeiro e talvez  principal é a compreensão sobre o que é saúde íntima e o convencimento de todas as pontas da operação de que o autoconhecimento feminino, uma comunicação clara sobre intimidade, entre outros pontos, são questões de saúde. A empreendedora indica que esse processo de convencimento passa pelos canais de vendas, por parceiros fabricantes e pesquisadores para o desenvolvimento do produto, destacando, por exemplo, a dificuldade de educar os principais fabricantes de lubrificantes do Brasil sobre a escolha dos componentes.

“Nós costumamos falar brincando que precisamos convencer a todos, menos às nossas clientes, porque elas sabem que essa é uma dor latente. Mas, de resto, precisamos convencer nossa fábrica de que nós queremos um produto natural e não algo com essência de chocolate. Precisamos convencer os mentores que muitas vezes querem que façamos produtos mais simples e baratos. Precisamos convencer o mercado que está acostumado com ‘lubrificantes corporais’ ou ‘deslizantes corporais’. O mercado precisa entender que é preciso desenvolver um produto íntimo correto, e não adaptar um creme comum para a intimidade. Isso gera mais risco e vulnerabilidade, tanto para a saúde do homem quanto da mulher”, finaliza Marina.

A importância da educação sobre a saúde sexual feminina e o papel das femtechs

Diante dos estigmas em torno do tema da saúde sexual feminina, as empreendedoras ressaltam o papel da educação, um compromisso que as femtechs que se voltam para esse mercado precisam endereçar. Para elas, a educação abrange desde a embalagem do produto e as informações que ele deve conter, até o relacionamento e comunicação com todo o ecossistema de saúde.

Marina afirma que é importante que o próprio produto seja educativo. Como exemplo, ela aborda o lubrificante da femtech. “Nós não falamos ‘gel deslizante’. Somos absolutamente contra isso, precisamos usar os termos corretos. Quando uma mulher pega o nosso produto, ela vai ler ‘lubrificante íntimo hidratante’. Quando ela virar a embalagem, vai ver todas as informações de que ele foi testado ginecologicamente e que ele deve ser usado na região vaginal. E tudo isso faz parte da segurança íntima dessa mulher, com a qual nos comprometemos”.  

Para além do produto, Marília reitera que esse papel da educação se estende a todo o ecossistema, o que é mais um desafio das femtechs nesse mercado, mas que se coloca como um ponto necessário até mesmo para escalar o negócio.

“A consumidora obviamente é a ponta final, mas para escalarmos como queremos, vamos precisar passar por vários espaços. Enxergamos um papel importante de nos sentarmos com especialistas de saúde, como nutricionistas, por exemplo, e colocarmos em pauta de que seria importante inserir no diálogo com a paciente como ela está em relação à saúde íntima. Por exemplo, será que essa paciente que está passando na nutricionista tem alguma questão com candidíase, que tem relação com a alimentação? A saúde íntima é muito ampla, então para nós a educação é essencial. Parece trivial, mas é um desafio gigantesco”, complementa Marília.

A especificidade do mercado brasileiro

Outro ponto destacado pelas empreendedoras a respeito do mercado de saúde sexual no Brasil é que ele tem suas especificidades, as quais não podem ser ignoradas pelas femtechs. Marília aponta algumas referências no mercado internacional, desde marcas menores como a Kindra, de produtos para menopausa, até outras maiores como a Queen V, de higiene e bem-estar vaginal. No entanto, ela destaca que elas usufruem muito dos dados existentes das próprias mulheres brasileiras pela especificidade do Brasil.

“É claro que essa prática de mercado de olhar para fora, trazer um modelo e adaptar para cá é um caminho. Mas existem diferentes ‘recortes Brasil’ para tudo, desde questões culturais que perpassam esses produtos até a questão do preço. Nos Estados Unidos, por exemplo, a cultura em relação à sexualidade é outra. Então é claro que olhamos para os modelos de fora, mas bebemos muito dessa fonte Brasil para avaliarmos os próximos passos em relação aos produtos e o que faz sentido com a nossa realidade”, conclui Marina.