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Autismo: ampliação do debate entre as partes envolvidas é necessária para emplacar soluções

As especialistas Leila Bagaiolo, Claudia Romano Pacífico e Raquel Del Monde falam sobre as perspectivas de futuro para o cenário de TEA no Brasil e a importância do diálogo com a sociedade

Letícia Maia

Nos últimos anos, o termo “autismo” começou a ganhar espaço no imaginário popular. Isso porque com o aumento da conscientização e das alterações feitas no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), realizadas na última década, a quantidade de diagnósticos dessa condição aumentaram de forma significativa. 

Segundo dados do CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, dos Estados Unidos) o número de crianças de até oito anos diagnosticadas com transtorno do espectro do autismo (TEA) era de 1 a cada 166, em 2004. Hoje, o relatório divulgado em 2023 estima que esse valor já seja de 1 a cada 36 crianças, conforme informações coletadas em 2020. No Brasil ainda não existem dados oficiais, mas considerando os dados do CDC, especialistas estimam que o país tenha cerca de 5,95 milhões de pessoas com autismo.

Junto a isso, em 2015 foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146). Desde então, os esforços para fazer com que a lei fosse cumprida aumentaram e o desenvolvimento de metodologias e tecnologias para esse público também. 

Mesmo assim, o entendimento do que é essa condição e como ela se manifesta no cotidiano das pessoas portadoras ainda está em estágios iniciais. Nas palavras de Leila Bagaiolo, psicóloga e cofundadora do Grupo Gradual: “Hoje ainda está tudo muito embrionário. Precisamos debater mais, com transparência e seriedade, para entender o que todo mundo apresenta de benefícios, necessidades e limites, assim conseguiríamos chegar em pontos em comum. Os serviços, as fontes pagadoras, os órgãos públicos, as escolas, os familiares e as pessoas com TEA precisam dialogar mais para que a gente realmente desenvolva práticas eficientes, eficazes e sustentáveis para esse público”. 

Portanto, para incitar esse debate, vale a pena entender quais são as características das pessoas com TEA. Veja abaixo.

Características do autismo

Compreender o autismo pode ser um pouco complexo. Apesar de possuírem algumas características em comum, cada pessoa com TEA é única. Ou seja, não há um padrão de comportamento que permita uma identificação fácil para quem não conhece muito sobre essa condição. 

“O autismo é uma condição neuro divergente, com características heterogêneas na definição e nas causas. Ele permanece ao longo da vida e impacta várias áreas do desenvolvimento, o que chamamos de pervasivo, porque abrange várias áreas do desenvolvimento social, de interesses e de aprendizado, já que muitas vezes existem comorbidades como a deficiência intelectual”, explica Bagaiolo. 

Nesse sentido, Claudia Romano Pacífico, psicóloga e sócia de Leila no Grupo Gradual, afirma que, segundo os manuais de categorização de condições psiquiátricas, existem dois pilares para diagnosticar uma pessoa com TEA.

“Um dos pontos é apresentar dificuldade de comunicação social. Nesse caso, é mais do que só comunicação e mais do que só interação social. Juntou-se ambos neste termo de comunicação social, porque ainda que esse alguém fale, pode não falar de uma maneira a promover interações adaptativas. Outra grande característica tem a ver com padrões repetitivos e restritos de comportamentos, que podem ser motores ou até padrões rígidos de pensamento e comportamento ao longo da vida”, explica Claudia.

No entanto, demais condições médicas também podem afetar as pessoas com autismo, como ansiedade, distúrbios do sono, convulsões e problemas gástricos. Também é comum que alguns apresentem maior sensibilidade a estímulos sensoriais, incluindo sons, sabores, tato e luzes. 

Mesmo assim, ainda há muito para se descobrir sobre os cérebros atípicos. 

Novas pesquisas tentam compreender o TEA

Para ajudar a ilustrar a questão, Claudia nos conta sobre novas linhas de pesquisa de neuroimagem, que investigam as respostas cerebrais de pessoas típicas e atípicas. 

Trata-se de uma análise sobre o direcionamento do olhar das pessoas e quais áreas do cérebro são ativadas quando elas olham, por exemplo, cenas de filmes. “A pessoa típica numa cena, por exemplo, de um filme que tem um diálogo. Ela olha para aquela cena quadrada e o cérebro dela vai acionar lugares associados à emoção. Já o pessoal atípico não, ele não olha a cena de maneira a escanear o ‘bate-bola’ da linguagem – que quando um fala eu olho para ele e quando outro fala eu olho para ele –, o atípico se fixa em um pedaço que tem movimento e não olha o todo”, explica Claudia.

Nesse estudo, os pesquisadores perceberam que, enquanto as pessoas típicas detectam o olhar, o movimento labial e a gesticulação, as pessoas com autismo tendem a olhar apenas para a boca, o que faz com que percam as demais informações. Esse padrão de olhar aciona uma parte diferente do cérebro e faz com que o portador não interprete situações sociais tão bem. 

Segundo este estudo de revisão, a questão do olhar é apoiada pela maioria dos estudos e sugere que o ato de evitar olhar nos olhos é uma forma de reduzir a hiperexcitação da amígdala. 

Há ainda linhas de pesquisa utilizando “mini cérebros” para avaliar os neurônios e as ramificações dos cérebros atípicos. O cientista brasileiro Alysson Muotri, por exemplo, está cultivando neurônios nos pequenos cérebros artificiais, o que possibilita investigar quais ramificações estão sendo criadas e quais sinais estão sendo transmitidos. 

“O que se tem visto no cérebro autista é uma ramificação diferente, de ligação de neurônios transmitindo sinais muito mais empobrecidos no cérebro autista. Então existem conexões menores, menos potentes e menos ramificadas. Esse é um jeito de funcionar, mas ainda está se descobrindo muita coisa”, completa Claudia Romano. 

Desafios

Os estudos e debates têm avançado, mas ainda há um longo caminho a percorrer. As especialistas entrevistadas para essa reportagem concordam que entre os grandes desafios do TEA estão elementos como: a pervasividade da condição; desinformação sobre a condição e o acesso a terapias e educação. 

O transtorno do espectro do autismo (TEA) é uma condição pervasiva. Ou seja, exige o trabalho integrado de diversos especialistas de diferentes áreas para estipular intervenções. 

Nesse sentido,“falta um diálogo grande, que a gente chama de intersetorialidade da saúde e da educação. O autismo necessariamente impacta a vida social e também o aprendizado, a própria convivência e os lugares de grande convivência. Então a saúde e a educação precisam estar mais alinhadas e ter recursos de ambos os lados. Nem é a saúde que tem que bancar tudo e nem a educação tem que fazer tudo, como confundem às vezes. A briga por recursos tem que ser dos dois lados, mas também precisa ser em conjunto”, explica a psicóloga Claudia Romano.  

Na visão de Raquel Del Monde, isso acontece porque “a maior barreira mesmo é a desinformação, falta de conhecimento sobre autismo pela sociedade em geral”. Para a médica, que é especialista em condições que afetam o neurodesenvolvimento, as redes sociais ajudaram a ampliar o conhecimento sobre, mas no dia a dia a realidade ainda está longe do ideal. “Quando as pessoas precisam de suporte na escola ou buscam terapias, elas ainda enfrentam muito desconhecimento por parte das pessoas”, explica Del Monde. 

Consequentemente, há um subfinanciamento de assistências nessas áreas. “Se a pessoa procura suporte educacional e terapêutico no sistema público, ela vai ter dificuldades. No sistema público em particular vemos que o suporte educacional está à frente do terapêutico, porque de uma forma ou outra, com as leis de inclusão educacional, as escolas procuraram formação. No entanto, muitas vezes é uma formação insuficiente e inadequada”, explica a médica.

Mesmo assim, o setor público ainda apresentou algum avanço na assistência educacional. Por outro lado, “os serviços que oferecem terapia no sistema público eles são muito rudimentares, muito primitivos, deixam muito, muito a desejar”, reforça a especialista.

Um dos motivos para isso é porque existe ainda “uma lacuna nas grades curriculares das graduações dos profissionais de saúde envolvidos no diagnóstico e tratamento”, diz Raquel. 

Ela continua, explicando que “tanto na medicina, quanto na psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, as grades não foram atualizadas para dar a atenção que o autismo merece. Devido à pressão da demanda por diagnóstico e tratamento, as pessoas têm procurado especializações na área, mas é uma procura em geral vinda de profissionais já formados e inseridos no mercado”. 

Métodos e novas tecnologias

Para minimizar os efeitos do autismo no cotidiano, é possível recorrer a métodos e tecnologias. 

Nas clínicas do Grupo Gradual, o foco é o método ABA (Applied Behavior Analysis), que em português significa Análise do Comportamento Aplicada. Essa metodologia é baseada em evidências e concentra-se na compreensão e modificação do comportamento. No contexto do autismo, a ABA ajuda a adquirir habilidades sociais, linguísticas, acadêmicas e de autocuidado, além de reduzir comportamentos problemáticos. Ademais, o método inclui ainda o uso de técnicas de ensino estruturadas e individualizadas, como reforço positivo e modelagem, para promover o desenvolvimento e a independência.

Para casos mais severos, nos quais o indivíduo realmente não fala, existe a comunicação aumentativa e alternativa. Conforme explica a médica Raquel Del Monde: “Os sistemas de comunicação aumentativa e alternativa podem ser muito simples, desde o PECS (Picture Exchange Communication System), que podem ser confeccionados um material simples, com pictogramas, imagens que simbolizam ações e objetos, para permitir que crianças não oralizadas ampliem a capacidade de se comunicar, se expressar e entender outras pessoas”. Esses sistemas podem ser associados também a tecnologias, como aplicativos para dispositivos móveis, que podem ser utilizados em diversos ambientes, como: em casa, escola, brincando com os amigos e outros. 

Ainda no que se refere à tecnologia, Leila Bagaiolo complementa dizendo que “em países de baixa e média renda é necessário ter opções mais criativas, para que possamos ter vários tipos de intervenção acontecendo. A tecnologia pode ser um vetor que possibilite esse tipo de ampliação de acesso, mas exige um debate grande da sociedade envolvida nisso”, diz a psicóloga. 

Pensando em promover esse debate, as fundadoras do Grupo Gradual afirmam estar trabalhando em conjunto com stakeholders, famílias, especialistas em TEA e profissionais de outras áreas para desenvolver e avaliar a viabilidade de um aplicativo chamado “Diário TEA”. 

Por fim, Cláudia e Leila reforçam que, para ampliar o debate é de grande importância que as pessoas diagnosticadas com TEA e suas famílias “assumam o protagonismo e venham para a linha de frente conosco”. 

Quer saber mais sobre autismo?

A Health Rocks recomenda as seguintes leituras:

  • Romano, C. ., & Bagaiolo, L. . (2022). Encanto, prática e compromisso com a produção e a disseminação da ciência do comportamento aplicada. Perspectivas Em Análise Do Comportamento, 13(2), 288–305. https://doi.org/10.18761/CoPACaDfa5 
  • Hume K, Steinbrenner JR, Odom SL, Morin KL, Nowell SW, Tomaszewski B, Szendrey S, McIntyre NS, Yücesoy-Özkan S, Savage MN. Evidence-Based Practices for Children, Youth, and Young Adults with Autism: Third Generation Review. J Autism Dev Disord. 2021 Nov;51(11):4013-4032. doi: 10.1007/s10803-020-04844-2. Epub 2021 Jan 15. Erratum in: J Autism Dev Disord. 2023 Jan;53(1):514. PMID: 33449225; PMCID: PMC8510990. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33449225/