Com a implosão do sistema de saúde, novos modelos de remuneração têm ganhado espaço na discussão, entre eles o value based healthcare. No entanto, além da questão de mindset, uma mudança dessa magnitude implica na superação de inúmeros desafios, devendo-se levar em conta que todo o sistema foi desenhado com base na lógica de pagamento por serviço.
Em entrevista exclusiva, Cesar Abicalaffe, CEO da 2iM Inteligência Médica e presidente da IBRAVS (Instituto Brasileiro de Valor em Saúde), discute todo esse cenário, discorre sobre as dificuldades, mas traz um olhar otimista para essa mudança, apostando no modelo de value based healthcare.
Confira os principais pontos da entrevista abaixo.
Como você vê o cenário atual da saúde?
Há muito a ser discutido quando falamos sobre saúde. Ouso dizer que se nós tivéssemos discutido modelos de remuneração antes, talvez o impacto na sinistralidade das operadoras não teria sido tão grande como estamos vendo hoje. Falo sobre a importância da reforma no modelo de remuneração desde 2007. É muito difícil mudar a lógica vigente, pois o paradigma é muito forte. Ele é muito focado na produção e no fornecimento do serviço em detrimento da centralidade do cuidado no paciente. Essa é a grande diferença do conceito da saúde baseada em valor. O interessante do value based healthcare é que se trata de um modelo discutido tanto em países que há uma medicina socializada – como países europeus – até países com uma medicina mais mercantilista, como os Estados Unidos. Quando temos países com lógicas muito diferentes de Sistema de Saúde discutindo a mesma coisa, fica claro que é importante olhar para isso.
Hoje você tem uma agência reguladora que tem todas as regras construídas sob uma lógica de pagamento por serviço (o fee for service). Quando falamos sobre um sistema de saúde baseado em valor, ele tem que ser longitudinal. Nós vivemos hoje em um sistema que é totalmente vertical, em que há uma fragmentação muito grande do cuidado, dos sistemas de informação. Estes são alguns dos grandes desafios que temos enfrentado na prática para reformarmos a lógica da remuneração. O modelo de remuneração distorce e direciona a lógica da assistência. Se não repensarmos o modelo, não vamos mudar a assistência. A compra de medicamentos de alto custo, por exemplo, tem que ser com base em valor. A remuneração dos hospitais deve ocorrer da mesma forma. Tudo isso tem que estar interligado: comprar, vender e pagar por valor.
Até 2018 tínhamos poucos projetos, o que vem aumentando exponencialmente, visto a crise que nos encontramos. Hoje já estamos com um projeto na Federação das Unimeds de São Paulo, estamos discutindo aqui no Paraná várias Unimeds, projetos dentro da UNIDAS, dentre outros. Finalmente estamos saindo da teoria. Se existe uma “bala de prata” na saúde, eu apostaria no modelo de remuneração.
Como 2iM, nós repensamos nosso modelo de análise. De 2018/ 2019 para cá, criamos um escore de valor da saúde, o EVS, que é uma métrica de análise de decisão por multicritério que compõe indicadores dentro de dimensões de processos, desfechos, reportes do paciente e custeio. Todos em nossos projetos, sejam os médicos, os hospitais e os pacientes com condições clínicas de alto impacto, são avaliados dentro desta metodologia, modificando, obviamente, os indicadores que a compõem.
Quando fizemos essa mudança na análise aqui na 2iM, começamos a receber demandas, por exemplo, da indústria farmacêutica, algo que até 2019 não tínhamos. Já estamos com mais de 30 projetos de avaliação de linhas de cuidado (onde aqui o paciente é avaliado) acontecendo e, pelo menos, 70% deles são financiados pela indústria. Mas por que a indústria tem se interessado por estes projetos? Porque ela quer acesso à dados do mundo real, quer participar da discussão e incorporar a sua tecnologia. Aquela política tradicional do desconto se há uma grande compra do remédio não cabe mais hoje.
As tecnologias são de altíssimo custo e o sistema não vai aguentar pagar isso, então temos que trazer a indústria para participar desse risco. É isso que temos chamado de value based agreement, que são os acordos com base no valor envolvendo toda a cadeia. Essa é uma outra mudança que já começou a acontecer, mas ainda tímida. Nós criamos uma unidade de negócio específica na 2iM para dar vazão à demanda. Esta área inclui “squads” específicos de analistas, programadores, inteligência médica, dentre outros, principalmente que o escopo da análise mudou. Para estes projetos é necessário acompanhar o processo de atenção, interoperar diferentes sistemas e avaliar o paciente em diferentes momentos de sua jornada no sistema de saúde.
Por onde você entende que deve começar essa mudança?
Acho que realmente deve haver uma lógica que busque estabelecer os acordos com base em valor. Todos esses players têm que ser envolvidos. Mas para chegar aqui eu tenho que construir um processo muito robusto de avaliação. Nós recebemos um prêmio do VBHC PRICE DRAGONS ENDORSMENT na Europa em maio deste ano. O principal objetivo quando submetemos o nosso projeto, foi apresentar o EVS – o nosso Escore de Valor em Saúde na avaliação de Linhas de Cuidado. Eles nos deram prêmio porque enxergaram que conseguimos traduzir de uma forma muito prática a lógica de avaliação. Como é que se avalia o valor? Como é que se mede isso? Todo mundo acha bacana discutir valor. Para chegar nisso, precisamos ter um processo muito consistente de avaliação. Hoje temos ferramentas de acompanhamento do processo da linha de cuidados do paciente em tempo real, porque não adianta só olhar para trás para poder medir o que aconteceu. Se não tivéssemos implementado uma ferramenta que acompanhasse o paciente, cada ponto de contato dele, e capturasse o dado para que eu pudesse medir o valor, não sairíamos da teoria.
Este é o ponto principal: analisar apenas dados retrospectivos, não nos permite fazer uma avaliação adequada de Valor. Quando falamos em dados em saúde, trabalhamos com três conjuntos: primeiro, aquele dado que existe e temos acesso; segundo, aquele dado que existe, mas não temos acesso porque ele está no meu sistema de forma não estruturada ou ele está no outro prestador, na farmácia, registrado em algum outro lugar; por fim, existe um terceiro conjunto de dados que não existe em lugar nenhum, mas eu vou precisar coletar, como o dado de experiência do paciente, o dado de qualidade de vida reportada por ele, etc. São dados que não são gerados em lugar nenhum. Para medir valor, precisamos olhar para isso.
Nós construímos soluções ao longo desses dois anos na 2iM para gerenciar esses três conjuntos de dados. Então, por onde começar? Acho que é importante começar com projetos pontuais, pequenos e controlados. Hoje, nós já estamos mapeando cerca de 20 condições clínicas. Para começar, entendo que é preciso escolher uma dessas condições, mapear todo o processo das linhas de cuidado dessa condição e definir claramente o que precisamos medir e como vamos capturar esse dado ao longo do tempo. Por isso, sugerimos começar em um ambiente pequeno e controlado, financiado, obviamente, para depois conseguirmos escalar isso. É importante que o projeto tenha como meta a construção dos acordos baseados em valor para que tenhamos o incentivo financeiro adequado entre todos os envolvidos e, portanto, alinharmos os interesses de todos.
Como a indústria farmacêutica entra nesse circuito? Ela é um player que tradicionalmente não entra em risco. Quando você paga por um comprimido de alto custo, independentemente do resultado ser positivo ou negativo, ela recebe. Como isso pode ser interessante para esse player?
Hoje eu estou com mais de 30 projetos aqui e pelo menos 60%, 70% deles são financiados pela indústria. Mas por quê? Ela está querendo primeiro participar das discussões. A farma sabe que o sistema está insustentável e algo deve ser feito. As companhias farmacêuticas sérias estão buscando por esses acordos. Temos o exemplo da lógica do governo comprando o Zolgensma, uma droga de 7 milhões de reais. O governo dividiu em cinco pagamentos: ele paga a primeira, faz a aplicação e anualmente vai pagando os 20% tradicionais. Se a criança morrer, ele não paga mais. Isso se chama compartilhar o risco. Não tem como incorporar medicamentos de alto custo se não for dessa forma.
Mas é um grande desafio, porque quando definimos um insucesso de uma terapia, precisamos avaliar a causa desse desfecho. Isso pode ser um problema na hora do processo de execução, por isso que precisamos medir todo o processo. Claro que temos que olhar para o desfecho, mas se não medimos o processo, não identificamos o que aconteceu. Por isso que a indústria tem entrado nesses trabalhos também. Ela quer, junto com o prestador e o pagador, desenhar e olhar para esse processo, se ele faz sentido. Há uma aceitação sobre compartilhar esse risco, desde que haja também uma certa governança sobre o que está sendo feito com esse paciente.
Como essa transformação digital na saúde se relaciona com esse modelo?
Isso tudo tem relação com a lógica digital. Não posso imaginar que vou ter um processo de avaliação consistente se eu não capturar esses dados de forma adequada. Esse terceiro conjunto de dados que eu comentei que eu preciso e não existe é uma questão para ser resolvida com tecnologia. As tecnologias, os wearables, as ferramentas que geram dados na ponta, isso está diretamente ligado à construção de um conjunto de dados robusto para fazer uma análise de Valor adequada e conseguir pagar de forma adequada.
Você tem algum exemplo de país que trilhou um caminho parecido e hoje tem um value based healthcare mais consolidado?
Existem alguns países, mas não vimos ainda uma ação completa. Países nórdicos, como a Suécia, e os Países Baixos têm um sistema muito interessante. Todo o processo de compra do governo na Holanda é feito com base em valor. São países que evoluíram muito.
Os Estados Unidos também evoluíram bem, embora lá tenha sido onde tudo começou. Mas um problema é que os americanos estão atuando com os conceitos antigos de modelos de remunerações, com muito foco no custo.
A Inglaterra está começando. Ela questionou muito o modelo de Porter para a sua realidade, pois o foco neste país é a saúde populacional, sendo pouco centrado na condição clínica. Para todos os países há a dificuldade do dinheiro, porque a pandemia impactou a saúde do mundo inteiro. Os países que estavam mais bem preparados com esse conceito baseado em valores estão saindo melhor da crise pós-pandemia.
Como você avalia que vai ser essa experiência do value based healthcare em cinco anos/ dez anos?
Eu estou apostando grande parte das minhas fichas nessa lógica, mas é um processo longo de mudança, principalmente por esses paradigmas que comentamos. Mas estamos sentindo um movimento interessante dentro da ANS. No Ministério da Saúde, estamos retomando as discussões neste novo governo. Mas tem pontos interessantes de discussão dentro da CONITEC, como por exemplo, pensar na compra e incorporação de novas tecnologias também com base no valor. Eu acredito que esse é um movimento que não tem volta, só que vamos precisar, por parte do pagador, de muita coragem para começar a pagar por Valor e engajar os prestadores a compartilhar esse risco. Não é fácil, mas é um processo primordial.
Quanto tempo você acha que vamos demorar para que tenhamos a maioria da saúde centrada no value based healthcare?
Temos algumas medidas muito estratégicas, mudanças que eu acho que são fundamentais. Por exemplo, essa é uma solução que deveria vir top-down. Entendo que quando tivermos uma posição do Ministério da Saúde definindo essas diretrizes como estratégia de Estado, e não de governo, teremos um movimento muito mais rápido. Se isso não acontecer e for deixado para o mercado regular, acredito que vai demorar mais tempo. Imagino que as ações vão continuar acontecendo, mas ainda de uma forma mais tímida. Eu acredito que a curto prazo, entre dois e três anos, teremos pelo menos 50% do sistema brasileiro fora do modelo fee for service. Nos Estados Unidos, a meta é que até 2030 os modelos de pagamento sejam todos baseados em valor.
Eu estive na China em Maio deste ano e fiquei impressionado com o que eu vi lá. Conversei com as pessoas e elas me mostraram a lógica de funcionamento do sistema de saúde deles. Eles controlam tudo pelo celular, o sistema é totalmente aberto. A pessoa marca a consulta, pega o resultado de exames, chega no hospital e tem informação de tudo que aconteceu com ela no sistema inteiro. Tudo é controlado diretamente do celular. Isso ocorreu em menos de 10 anos, porque é uma solução top-down. Não estou entrando no mérito da situação política de lá, mas da estratégia de adoção de algumas ações que merecem, no mínimo, ser avaliadas.
Para finalizar, gostaria de saber a sua impressão sobre para onde estamos indo e a sua percepção sobre onde os empreendedores podem ajudar?
Eu sou otimista e acredito muito na mudança. O sistema vai se reinventar e se reorganizar. Quanto às healthtechs, na minha opinião, acho que existem dois pontos bem fortes que precisamos olhar. Acho que não cabe mais hoje uma healthtech não pensar em duas coisas: primeiro, uma solução que traga redução de custo e melhoria da eficiência operacional, porque o sistema está muito ineficiente e tem muito desperdício; e, segundo, uma solução que busque o acesso e engajamento do paciente. Esses dois pontos são fundamentais para qualquer tecnologia na área de saúde ter sucesso.