Muito tem se falado sobre a inteligência artificial na saúde e o seu potencial em diversos campos. Por exemplo, a edição de 2023 do Future Health Index, relatório que levanta algumas perspectivas sobre o futuro da saúde ao redor do mundo, levantou que 83% dos líderes entrevistados planejam investir em IA nos próximos três anos, destacando duas prioridades: a aplicação de IA como ferramenta de suporte à decisão clínica e o uso da tecnologia trazer maior eficiência operacional e clínica.
No entanto, ao mesmo tempo que essas ferramentas são vistas como parte de uma grande tendência – que tem sido cada vez mais repercutida, principalmente com a popularização do ChatGPT – o entendimento sobre o que realmente é a inteligência artificial, como ela funciona e o que de fato tem sido implementado hoje na saúde ainda é muito difuso.
Para ajudar na compreensão de todas essas questões e desse cenário impreciso do potencial e uso da inteligência artificial na saúde, contamos com o auxílio de Alexandre Chiavegatto Filho em uma entrevista exclusiva. Ele é docente especialista em machine learning em saúde na Universidade de São Paulo (USP), tem um pós-doutorado na Universidade de Harvard e é colunista do Estadão sobre esse tema.
Afinal, qual a definição de inteligência artificial?
De forma muito simples, Alexandre Chiavegatto define a inteligência artificial como “a capacidade de máquinas tomarem decisões inteligentes”. Nesse sentido, o grande desafio seria a definição do que é inteligência, uma discussão de âmbito filosófico que ele responde com a acepção que lhe faz mais sentido: “seria a capacidade de tomar a melhor decisão possível a partir da informação disponível”. Ou seja, no final das contas a inteligência artificial é uma questão de análise de processamento de dados, o que mostra a centralidade e importância do papel deles.
Ainda em relação a definição e funcionamento da inteligência artificial, tem se tornado comum ouvirmos os termos machine learning e deep learning, mas sem uma explicação precisa do que eles significam. Chiavegatto explica que atualmente a área de inteligência artificial é dominada por machine learning, mas que nem sempre foi assim.
“Antes nós tínhamos máquinas tomando decisões inteligentes a partir de regras pré-estabelecidas por humanos. Isso é o que nós chamamos hoje de ‘inteligência artificial clássica’. Mas hoje IA é quase um sinônimo de machine learning, que funciona da seguinte maneira: ao invés de inserirmos as regras para o computador tomar uma decisão inteligente, nós orientamos o aprendizado delas por parte desse computador a partir dos dados disponíveis e dos exemplos”.
Quanto ao que é chamado de deep learning, ele explica que se trata apenas de um dos algoritmos que é utilizado hoje para o aprendizado de regras, sendo então um subcampo dentro da área de machine learning.
Para cada dose de “hype”, recomenda-se uma de ceticismo
Tem se tornado cada vez mais comum acessar o noticiário e ver manchetes, tanto internacionais quanto no Brasil, que apontam para a inteligência artificial na saúde como um “mercado gigantesco” ou uma “grande revolução”. Essas chamadas trazem um ar de otimismo justificável, uma vez que essas tecnologias têm um potencial muito grande no setor, mas a verdade é que estamos apenas no início, conforme aponta Chiavegatto.
“Estamos hoje na pré-história da inteligência artificial. Hoje ela praticamente não existe na área mais importante de todas, que é a saúde. Então nós ouvimos as pessoas falarem ‘nossa, estamos vivendo um hype em que estão colocando IA em tudo’, mas a verdade é que a inteligência artificial sequer começou a entrar em 99% das áreas”, complementa.
Além disso, o professor ressalta que hoje podemos chamar praticamente qualquer análise de dados de inteligência artificial, pelo fato de ela ter aprendido a partir de dados. Sem dúvida, isso contribui com essa percepção de que “a inteligência artificial está por toda parte”. Só que, como ele destaca, existem muitas análises de baixa qualidade, dado que hoje ainda não são muitas pessoas que entendem a fundo sobre a área e conseguem avaliar o que está sendo feito. Nesse sentido, ele recomenda: “uma primeira dica é ser bastante cético quanto ao que as pessoas apresentam de resultados”.
A saúde ainda não vive o seu “momento ChatGPT”
Chiavegatto conta que a aplicação na inteligência artificial na saúde ainda está muito no início, principalmente por se tratar de uma área muito “consequente”. Ou seja, se um algoritmo apresenta uma probabilidade errada de prognóstico, isso pode ter consequências muito profundas na vida dos pacientes. Nesse sentido, deve haver um cuidado muito maior na inserção deste tipo de ferramenta na prática clínica.
“Ainda não contamos com um grande marco da IA na saúde. Temos várias descobertas que indicam as possibilidades de uso no setor, mas não houve ainda nenhum grande ‘momento ChatGPT’, no sentido de mudar o direcionamento da área. Estamos esperando o amadurecimento da área e tentando resolver todos os problemas técnicos para colocar isso em prática”.
No entanto, ele relata que os laboratórios têm descoberto que os algoritmos que funcionam na área da saúde são os mesmos que atuam com vários aplicativos de uso cotidiano, como o Instagram, o Waze, a Netflix e o ChatGPT. Ao que tudo indica, são esses mesmos algoritmos que vão transformar a saúde. “Nós só precisamos de mais cuidado e paciência”, complementa Chiavegatto.
A complexidade e os desafios na aplicação da inteligência artificial na saúde
O professor conta também sobre alguns problemas levantados no Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP. Sendo o Brasil um país de dimensões continentais e a saúde uma área extremamente complexa, um algoritmo que aprende a partir de dados de pacientes de São Paulo funciona da mesma forma no interior de outro estado em outra região brasileira completamente diferente? Chiavegatto responde que não.
“Se compararmos São Paulo com, por exemplo, uma cidade no interior do Pará, fica claro que existem outros tipos de pacientes, há uma outra formação dos profissionais de saúde, uma disponibilidade de exames diferente. Nesse sentido, os nossos estudos têm mostrado que a qualidade cai bastante por conta das enormes diferenças dentro do Brasil. Então um desafio que estamos trabalhando é justamente como podemos transferir esse conhecimento para diferentes regiões do país? Chamamos isso de aprendizado de transferência”.
Além disso, outro desafio está na questão do aprendizado contínuo. Alexandre Chiavegatto explica que, à medida que o algoritmo vai predizendo coisas, ele reaprende com os resultados, o que é muito importante na saúde, em que há uma expectativa de mudanças quanto a protocolos e processos. Há uma necessidade de readaptação do algoritmo para essas novas realidades.
Ainda existe outro ponto sensível, que diz respeito à identificação e correção de possíveis preconceitos da inteligência artificial por conta dos dados disponíveis para o seu aprendizado. “Existe, por exemplo, um risco real de que o algoritmo recomende melhores decisões para pessoas ricas do que para a população mais pobre, uma vez que hoje existe uma realidade de que nós coletamos mais dados de pacientes mais ricos”, explica.
O dinamismo da inteligência artificial no ambiente regulatório da saúde e a ideia do “bode expiatório”
Uma questão frequente em meio a esse debate diz respeito ao ambiente regulatório da saúde e como ele afeta o desenvolvimento da inteligência artificial no setor. É evidente que a saúde é uma área extremamente regulamentada, como deve ser. Nesse sentido, Chiavegatto ressalta que há um desafio muito grande tanto para o FDA nos Estados Unidos quanto para a Anvisa no Brasil.
“É difícil regular porque são, de certa forma, dispositivos da área da saúde que vão mudar com o tempo. Como regulamos algo que está tomando uma decisão hoje de uma forma mas que talvez daqui há 3 meses tome uma decisão diferente ou auxilie de outra forma? Isso porque os algoritmos estão reaprendendo conforme recebem mais dados. Mas a Anvisa já está debatendo isso há bastante tempo e o FDA já regulamentou vários dispositivos de IA”, conta.
Além da questão regulatória, questiona-se também quanto a possibilidade de responsabilização da inteligência artificial mediante uma decisão tomada, tópico que ainda gera confusão. Afinal, a inteligência artificial poderia levar a culpa por uma escolha clínica errada e ser colocada na condição de bode expiatório? Chiavegatto explica que não, uma vez que os algoritmos não vão tomar decisões na saúde.
“Na saúde nada é 100%. Não consigo falar que há 100% de chance de um determinado paciente ter câncer em 5 anos, por exemplo. É sempre uma probabilidade que vai ser passada para o profissional de saúde utilizar junto a outras ferramentas do cotidiano dele. A diferença é que o machine learning vai unificar todos os exames e dados de saúde do paciente em um mesmo resultado, trazendo uma probabilidade. É um direcionamento para que o médico tome a melhor decisão possível”.
Possíveis aplicações da IA na saúde: a ampliação do acesso e mais tempo para a prática da medicina
Quando se pensa no potencial da inteligência artificial na saúde, existem muitas expectativas. Nesse sentido, o professor da USP levanta duas aplicações centrais que a ferramenta pode ter na saúde, sendo elas o auxílio da IA nas decisões clínicas, que deve ocorrer mais a longo prazo, e a diminuição das burocracias, que deve ser incorporada mais rapidamente pelo setor como um todo.
Para ele, o maior potencial da inteligência artificial está na capacidade de ajudar o profissional médico a tomar as melhores decisões clínicas quanto ao diagnóstico e prognóstico de pacientes. Chiavegatto ressalta que essa aplicação da IA amplia o acesso à uma saúde de qualidade em todas as regiões brasileiras, mesmo naquelas que não contam com especialistas médicos.
“Existem muitas cidades brasileiras que contam apenas com um único médico e ele precisa fazer o papel de cardiologista, pneumologista, etc, porque não existe um especialista para encaminhar o paciente. Nos próximos anos a inteligência artificial vai ajudar muito nisso. Os médicos terão acesso a mesma qualidade de diagnóstico e decisão clínica. Isso vai mudar radicalmente a atenção à saúde no Brasil. Mas isso também é a parte mais difícil e vai demandar mais tempo”.
Em contrapartida, a aplicação de IA que deve ser feita mais rapidamente diz respeito a diminuição do tempo do médico voltado para burocracias. Chiavegatto aponta que uma das principais queixas – tanto de médicos como de pacientes – no atendimento ambulatorial é que o profissional passa muito tempo digitando as informações no prontuário eletrônico. Dessa forma, o docente compartilha que já existem algoritmos que conseguem escutar a conversa entre o médico e o paciente e são capazes de preencher o prontuário automaticamente.
“Outro ponto é que o médico não vai perder tanto tempo revisando o prontuário. Haverá um algoritmo chamando a sua atenção para as informações do prontuário que são relevantes mediante os sintomas relatados pelo paciente, trazendo um resumo do que importa para aquele quadro clínico. Outros pontos são preenchimento de laudos, reembolsos, relatórios de consultas e cirurgias. Vai sobrar mais tempo para o médico praticar a medicina de fato”, complementa.
O grande, mas pouco explorado, potencial brasileiro no campo de inteligência artificial na saúde
Em relação ao potencial brasileiro na área, Chiavegatto avalia que “o Brasil, no setor de saúde, tem o potencial de ser o país mais avançado do mundo em inteligência artificial”, o que se deve principalmente ao fato de que a maioria dos atendimentos no país acontecem dentro de um mesmo sistema, que é o SUS, o qual coleta dados unificados.
“Existem outros países, mesmo aqueles que são mais desenvolvidos, que têm sistemas de informação de saúde muito piores que o Brasil. Eles têm dificuldade de coletar dados unificados de óbitos, nascimentos, internações, etc. Já o Brasil coleta muitos dados e 75% da população utiliza exclusivamente o mesmo sistema, que é o SUS”.
Apesar do país ter potencial para liderar essa transformação, o professor da USP comenta que não é isso que acontece. “Parte dos nossos representantes estão com um foco maior em regular a área de inteligência artificial, diferente da grande maioria dos outros países cujos líderes estão focados em incentivar e promover a área de inteligência artificial”, Chiavegatto acrescenta.
Em contrapartida, do lado da educação médica, ele ressalta que tem visto um interesse crescente dos alunos de medicina em relação à inteligência artificial. Chiavegatto conta que, apesar de muitas pessoas de fora acreditarem que os médicos seriam avessos a essas ferramentas, ele não costuma mais ser questionado por esses profissionais se “a IA vai substituir o médico”. Na verdade, ele relata que tem visto muitos alunos buscando cursos, começando a programar e desenvolvendo algoritmos.
“A residência da USP, por exemplo, já possui uma disciplina obrigatória de saúde digital e os alunos de graduação estão tendo uma introdução de várias matérias em torno deste tema, algo que vai ser inevitável para o futuro dos médicos e vai potencializar seu impacto. Isso tem atraído muitos estudantes”, finaliza.