No final de maio deste ano, o marco legal das pesquisas clínicas finalmente foi sancionado. Ao definir os direitos e deveres de todas as partes envolvidas em um ensaio clínico, a ciência brasileira finalmente começa a pavimentar o caminho necessário para avançar e alavancar seu desenvolvimento como indústria.
Foram necessários cerca de sete anos de debates e diversas alterações até finalmente obter o sancionamento presidencial.
Mas afinal, por que a lei de pesquisa clínica precisava mudar?
Panorama Nacional
De acordo com os dados de 2023 do observatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil está em 17ª posição no ranking mundial de ensaios clínicos. Apesar de ser líder quando se trata da América do Sul, do total de pesquisas em andamento no mundo apenas 2,57% estão sendo feitas no Brasil.
Um dos elementos que permitiu essa posição – mesmo que não tão elevada, ainda sim significativa – é a rica diversidade étnica que o país possui. Nesse sentido, vale pontuar que um estudo com grande variedade étnica permite estudar o desempenho de um medicamento ou terapia com mais assertividade, já que leva em consideração as heranças genéticas de cada grupo, bem como seus hábitos culturais e comportamentais. No contrário, uma substância pode ter sua eficácia ou efetividade limitada a grupos de poucas regiões do planeta.
Entre outros aspectos que corroboram, é possível citar:
- O Brasil possui o maior PIB da América Latina;
- E o 12º maior PIB do mundo;
- A 7ª maior população do mundo;
- É o 7º maior mercado farmacêutico do planeta;
- Sistemas de saúde (público e privado) bem consolidados;
- Menor custo de mão de obra.
Os custos da pesquisa clínica no Brasil
Segundo o relatório “A importância da Pesquisa Clínica para o Brasil”, publicado em 2022 pela Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), entre os nove países mais relevantes para o cenário científico, os únicos da América Latina a integrar o gráfico são Brasil e Argentina.
Como é possível observar, o território brasileiro aparece em grande vantagem competitiva por ter custos menores do que na Argentina, Alemanha, Bélgica e Reino Unido. Ainda segundo o relatório, os custos de pesquisa com oncologia (que é, mundialmente, um dos nichos que mais recebe investimento para pesquisa) podem ser reduzidos em até 45% ao ser realizado no Brasil, quando comparado aos países líderes em pesquisa clínica.
Brasil x Mundo
Entretanto, o Brasil tem potencial para muito mais e é justamente isso que o novo marco das pesquisas clínicas tenta destravar: impulsionar o país para estar entre os dez primeiros colocados do ranking mundial.
Na primeira imagem abaixo, é possível observar o desempenho dos ensaios clínicos ao redor do mundo ao longo dos anos de 1999 até 2021. Na tabela A, há o número de ensaios clínicos realizados por ano e por região do mundo; já na B, a análise é feita daqueles com maior renda, para aqueles com a menor renda.
Já na segunda imagem, a linha laranja destaca apenas o desempenho do continente americano (sem diferenciar entre norte, centro e sul).
Por fim, na figura abaixo está a tabela C, que elenca os países com maior número de ensaios clínicos por país ou área. Como indicado no início desta edição, o Brasil aparece em 17ª posição.
Principais obstáculos da antiga regulamentação brasileira
Trabalhar com ciência não é algo simples. São diversos segmentos atuando através de muitas etapas para conseguir fazer acontecer o que chamamos de pesquisa clínica. No Brasil, uma série de obstáculos acabam tornando o mercado científico menos competitivo quando comparado aos países líderes.
Para iniciar um estudo clínico, as propostas devem passar por três instâncias: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). A análise é necessária para garantir a segurança e a ética da pesquisa.
No entanto, o problema começa com o excesso de burocracia. Trata-se de uma realidade na qual os projetos de estudos levam uma média de oito meses, segundo a ABRACRO (Associação Brasileira das Organizações Representativas de Pesquisa Clínica), para serem analisados e, caso estejam de acordo com as diretrizes, serem aprovados.
Esse prazo é um dos primeiros elementos que freiam a competitividade científica brasileira, já que o mais comum – quando comparado aos demais países – é que se aprove um estudo em dois meses.
Segundo dados da IQVIA, em 2018, por exemplo, a média de tempo para que um projeto de pesquisa clínica fosse avaliado e aprovado era de:
- 32 dias nos Estados Unidos;
- 62 dias na Polônia;
- 86 dias no México;
- 113 dias na Argentina;
- E 215 dias no Brasil.
Para pensar em competitividade, precisamos pensar através da lógica da indústria. De forma resumida, podemos dizer que funciona assim: as farmacêuticas elegem a terapia-alvo a ser estudada e patrocinam para que a pesquisa aconteça. Em seguida, estipula-se a quantidade de participantes necessária para cada etapa – se estivermos falando de diabetes, por exemplo, o ideal é ter pelo menos 10 mil participantes dos mais variados perfis étnicos.
Para cumprir essa exigência, seleciona-se os países que vão integrar o estudo, e este é o momento de conflito, porque os projetos passam por um extenso período de tramitação entre as instâncias até finalmente ser aprovado.
Se de um lado o Brasil possui vantagens, a regulamentação – até então – não passava segurança jurídica o suficiente e o tempo de aprovação atrasava a realização de estudos.
Portanto, se de um lado o Brasil possui vantagens, a regulamentação – até então – não passava segurança jurídica o suficiente e o tempo de aprovação atrasava a realização de estudos.
A nova legislação
O projeto que começou como PL 6007/2023 agora aparece no noticiário como Lei 14874/24 e oferece, enfim, maior segurança jurídica para a realização de pesquisas com seres humanos.
Com a nova legislação, foram definidos 56 termos legais e científicos, que ajudaram a definir o termo ‘pesquisa clínica’ como “procedimentos científicos desenvolvidos de forma sistemática para avaliar a ação, a segurança e a eficácia de medicamentos, verificar a distribuição de fatores de risco de doenças e avaliar os efeitos de fatores ou de estados sobre a saúde”.
Etapas
Entre as decisões, foi criado o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica com Seres Humanos. O novo sistema será responsável por editar normas, avaliar e credenciar todos os envolvidos nos ensaios clínicos e deve representar uma única instância. Dessa forma, graças à estrutura unificada, a análise do projeto deve ser mais rápida e alcançar o prazo máximo de 180 dias. Ademais, sua regulamentação será feita pelo Poder Executivo.
Novo biobanco e biorrepositório
De acordo com o Conselho Nacional de Saúde, até março de 2023 o Brasil contava com 88 biobancos aprovados pelo CEP/CONEP. Com a criação de um novo sistema, o país ganha também um novo biobanco e um biorrepositório que devem reunir materiais para pesquisa sem fins comerciais.
Apesar do nome sugerir que sejam sinônimos, o biobanco e o biorrepositório representam objetivos e responsabilidades diferentes para a coleta e armazenamento de materiais biológicos. Enquanto um trata de objetivos mais amplos, o outro tem como finalidade projetos específicos, o que inclui o pesquisador do projeto como um dos responsáveis pelo armazenamento.
Remuneração
Com as novas regras, conceder vantagens financeiras para participantes segue proibido. No entanto, existem exceções, como nos casos onde um indivíduo considerado saudável participa para testes de bioequivalência. Por outro lado, o reembolso de despesas como transporte, alimentação e entrega de material foi autorizado.
Responsabilidades
No que se refere às responsabilidades, foram definidas as responsabilidades dos patrocinadores e pesquisadores, bem como diretrizes para a fabricação, importação ou exportação dos produtos estudados. Por fim, está estabelecido também regras para publicidade e normas para garantir o monitoramento e transparência.
Vetos
Outra mudança – e que gerou certa polêmica – foi a redução do prazo de fornecimento de medicamentos para os participantes dos ensaios. Em tese, a oferta de medicamentos seguirá sem um prazo definitivo para acabar.
Isso porque, entre os vetos do presidente Lula está o Art. 33, inciso VI, que permitiria a comercialização de medicamento experimental para os participantes do estudo após cinco anos do fim do estudo.
No entanto, o inciso VI foi derrubado sob a seguinte justificativa: “Não é adequado interromper o direito ao acesso pós estudo aos/às participantes de pesquisas, visto que é direito adquirido, por justiça, nem na disponibilidade comercial do medicamento, nem disponibilidade na rede pública de saúde, o que significaria repassar aos/às contribuintes a responsabilidade do patrocinador de fornecer o acesso pós estudo”.
Por outro lado, de acordo com a constituição brasileira e a dinâmica dos três poderes, existe ainda a possibilidade de derrubada do veto ao longo dos próximos meses.
Já o segundo veto diz respeito ao 3º parágrafo do Art. 24. O trecho exigia que o Ministério Público fosse comunicado sobre a participação de indígenas nas pesquisas. No entanto, foi vetado por ferir o princípio da isonomia e por apontar para “possível situação de tutela estatal em relação aos povos indígenas, condição já superada pela legislação”. Você pode entender melhor sobre os vetos clicando aqui.
Potencial econômico para o Brasil
Steady-state
Para entender o potencial econômico dos ensaios clínicos no Brasil, o relatório de 2022 da Interfarma baseia-se na ideia de “estado estacionário” (em inglês, steady-state), cujo conceito é: uma condição em que as variáveis de um sistema não se alteram com o passar do tempo.
Assim, a análise indica que, no Brasil, o gasto médio por estudo clínico em andamento costuma ser de 2,4 milhões de dólares. Aplicando esse valor em oncologia, o valor médio estimado é de US$1 milhão. Considerando tais informações, estima-se ainda que, caso houvesse um investimento adicional de 315 milhões de dólares, seria possível ampliar o número de estudos clínicos, saindo de 238 para 540 estudos. Nas palavras dos pesquisadores: “Esse aumento se acumularia ano a ano, até chegar a um steady-state de entrada e término destes estudos, equivalente ao tempo médio de condução de um estudo clínico”.
Ademais, a apuração da Interfarma sugere que a média global de duração de ensaios clínicos é de 26 meses – quando já em andamento, excluindo as fases de pré-desenvolvimento.
Possíveis impactos indiretos
No que diz respeito aos impactos indiretos na atividade econômica, um relatório intitulado “Biopharmaceutical Industry-Sponsored Clinical Trials - Impact on State Economies”, elaborado em 2015 pela Pharmaceutical Research and Manufacturers of America (PhRMA), aponta que a indústria farmacêutica aplicou cerca de US$10 bilhões na realização de estudos clínicos nos Estados Unidos em 2013, o que gerou um impacto econômico positivo estimado em cerca de US$25 bilhões. Na visão dos pesquisadores da Interfarma, “se aplicarmos esse mesmo raciocínio ao contexto brasileiro, podemos concluir que o impacto econômico total poderia alcançar R$5 bilhões”.
Além disso, a ampliação do acesso promovida pela natureza dos estudos clínicos pode acarretar uma redução nos custos com medicamentos para o governo. Isso porque, segundo um estudo conduzido pelo Ministério da Saúde da Turquia – em parceria com as Universidades de Istambul e Hacettepe –, destacou que um investimento de US$107 milhões, realizado entre os anos de 2006 e 2010, resultou em uma economia mínima de US$311 milhões nesse mesmo período, graças ao acesso oferecido a 14.370 pacientes aos estudos clínicos.
Nesse caso, estamos falando apenas de tratamento medicamentoso, porém há ainda a possibilidade de reduzir gastos associados à internação e falta de produtividade dos pacientes. “Ampliando o escopo de análise, podemos enxergar o crescimento da pesquisa clínica como um vetor de equilíbrio da balança comercial do setor de saúde, na medida em que o aumento de investimentos internacionais é acompanhado de menor importação de conhecimento científico e tecnológico”, afirmam os pesquisadores do relatório da Interfarma.
Experiência brasileira
Além disso, um estudo da Aliança Pesquisa Clínica Brasil, publicado em 2015, avaliou 46 estudos clínicos no Brasil e aponta que, destes, 18 foram descontinuados devido a atrasos nas aprovações necessárias – todos os estudos eram patrocinados pela indústria e foram submetidos entre os anos de 2007 e 2013.
Como consequência, os dados sugerem que cerca de 530 pacientes brasileiros deixaram de participar desses 18 estudos, refletindo em uma perda de acesso a tratamentos que podem ter gerado gastos por volta de US$15 milhões para o setor de saúde brasileiro (a análise levou em consideração custos com pacientes, medicamentos, despesas administrativas e demais suprimentos).
Por fim, com o novo marco das pesquisas clínicas, o Brasil pode alcançar a 10ª posição no ranking mundial, além de atrair cerca de 3 a 5 bilhões de reais em investimentos a cada ano.