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Psiquiatria: dos apps aos biomarcadores, o que há de novo para a saúde mental

Psiquiatras contam como os aplicativos, wearables e softwares estão mudando a forma de lidar com a saúde mental

Letícia Maia

Quando o estilo de vida de toda uma sociedade muda, faz sentido pensar em soluções que se encaixem nessa nova realidade. Na psiquiatria, as novidades mais comentadas costumam se referir à tecnologia de medicamentos – como substâncias que levam menos tempo para trazer a estabilidade desejada, causam menos efeitos colaterais, etc. No entanto, existem outras possibilidades que podem ser tão necessárias quanto. 

Entre as novidades, cientistas do mundo todo estudam biomarcadores que possibilitam o desenvolvimento de medicamentos para quadros de saúde cada vez mais específicos. Além disso, na última década diversos aplicativos e outras tecnologias têm sido desenvolvidas para ajudar a otimizar o tratamento dos pacientes, além de rastrear sinais que aceleram o diagnóstico e início do tratamento. 

Por que a psiquiatria precisa inovar?

Na saúde mental, assim como em tudo que se refere à saúde, não existem soluções que atendam a todas as pessoas. Embora um grupo possa compartilhar de um mesmo diagnóstico, a forma como cada corpo responde ao tratamento costuma ser diferente. A título de exemplo, um estudo observacional multicêntrico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), realizado em 2019 com 1.475 participantes, estimou que de 30% a 40% dos pacientes com depressão da América Latina não respondiam às medicações. 

Ou seja, a descoberta de novos biomarcadores pode ajudar a desenvolver medicamentos mais assertivos para essas pessoas. No entanto, é possível também que elas precisem de abordagens diferentes no tratamento – e é aí que as novas tecnologias entram.

As possibilidades de novas estratégias para a manutenção ou restauração do bem-estar mental agora estão diretamente ligadas aos smartphones e acesso à Internet. 

Isso porque os smartphones já fazem parte da realidade da maioria das pessoas e representa um potencial dicotômico: ao mesmo tempo que o uso excessivo desses dispositivos está associado à maior incidência de transtornos mentais – em especial, devido às redes sociais –, é possível utilizar dessa tecnologia já difundida para promover bem-estar mental, melhorar adesão de tratamento e rastrear sintomas. Por isso, vale considerar os seguintes dados:

  • 78% da população mundial com mais de dez anos possui um celular (Fonte: ONU).
  • E 67% possui acesso à Internet (Fonte: ONU). 
  • Cerca de 249 milhões de smartphones estavam em uso no Brasil em 2023, o que equivale a 1,2 celulares por habitante. (Fonte: FGV).

Em contrapartida, o que os ‘smartphones’ tem acarretado para a saúde mental das pessoas – em especial, o público jovem – é:

  • 39% dos usuários de redes sociais consideram-se viciados nelas (Fonte: Forbes/Statista).
  • 67% dos adolescentes afirmam que se sentem pior em relação às próprias vidas devido ao uso das redes sociais (Fonte: Forbes/Healio);
  • Em paralelo, 73% encontram consolo para tais questões através das mesmas plataformas (Fonte: Forbes/Healio);
  • Adolescentes que utilizam redes sociais por mais de 3 horas por dia são mais propensos a internalizar problemas (Fonte: Forbes/Jama Psychiatry).

Foi considerando informações como essas que os especialistas em saúde mental juntaram-se aos de tecnologia. 

Tecnologias para saúde mental

15 mil aplicativos de saúde, essa era a quantidade identificada por um estudo da UNESCO em 2015. Desses, 29% dos apps tinham a saúde mental como foco. Entre eles, são populares o Calm e o Headspace – focados em meditação guiada e mindfulness – e o Cíngulo, que tem como foco a terapia guiada, uma abordagem que ajuda usuários a lidar com a ansiedade, estresse, insegurança e outros.

Em geral, os aplicativos direcionados para a saúde mental são uma boa alternativa para quem quer se conhecer melhor, já que eles ajudam a fazer o acompanhamento de hábitos e mudanças no humor, além de aprender sobre estratégias que ajudam a manter o bem-estar mental. 

De acordo com a revisão integrativa “Uso de aplicativo móvel para assistência à saúde mental em ambiente acadêmico”, publicada na Revista JRG de Estudos Acadêmicos, estudantes universitários apresentam maior abertura para utilizar aplicativos direcionados para saúde mental. Nas palavras dos pesquisadores, “o desenvolvimento  de  aplicativos  móveis  de  saúde  tem  aumentado exponencialmente, e foi relatado que o uso de aplicativos melhora a eficiência da prestação de cuidados de saúde e a eficácia do tratamento (Na et al., 2022)”.

Junto a isso, a análise do estudo aponta que o setor de mHealth (que engloba aplicativos de celular e wearables), tem crescido cada vez mais nos últimos anos. Colocando esse potencial em números, uma pesquisa da Global Market Insights (GMI) indica que o mercado de mHealth foi avaliado em cerca de US $111 bilhões e deve apresentar um crescimento anual de 22% até 2032 – ano no qual já deve movimentar cerca de 888 bilhões de dólares.

Para chegar a tal projeção, a análise levou em consideração o crescimento de serviços digitais de saúde para monitoramento de pacientes, bem como a promoção dessas tecnologias por parte de grandes instituições governamentais e outras características, como:

  • Aumento da penetração dos telemóveis e da Internet – nesse sentido, o relatório “The Mobile Economy” de 2023 aponta que, até 2030, 92% das pessoas no mundo devem ter um smartphone. 
  • Aumento da incidência de doenças crônicas;
  • Grande economia de custos na prestação de cuidados de saúde;
  • Adoção crescente de dispositivos médicos inteligentes vestíveis.

Outro ponto que vale considerar, é que a análise de 2024 do relatório “The Mobile Economy”, mostra que o uso de smartphones para melhorar e/ou acompanhar a saúde passou de 15% em 2015 para 21% entre os anos de 2016 e 2022, alcançando 2 bilhões de usuários. 

Mas afinal, o que há de especial nessas tecnologias?

Apps e Wearables

Para compreendermos porque utilizar tecnologias nos tratamentos de saúde mental, o psiquiatra forense e sócio-diretor da Ethos Psiquiatria, Thiago Fernando, explica que “diversos estudos mostram que realmente existe uma boa parte da população mundial que faz uso de smartphones e pacientes com transtornos psiquiátricos os utilizam muito, então é uma das possibilidades que teríamos, de utilizar dados tanto de smartphones, quanto de dispositivos vestíveis – como smartwatches e afins”. 

Dentro disso, existe a fenotipagem digital. Conforme colocado no estudo “Fenotipagem digital e transtornos da personalidade: uma relação necessária na era digital”, disponível na rede latinoamericana de Periódicos de Psicologia (PePsic), o termo “refere-se à quantificação in-situ do fenótipo humano, usando dados pessoais de dispositivos digitais”. 

Ou seja, a fenotipagem digital é sobre o acompanhamento de sintomas e outros sinais fisiológicos. “Conseguimos fazer um monitoramento de sintomas de ansiedade por escalas, portanto o paciente abre o aplicativo e vai colocando em escalas diferentes aspectos relacionados à ansiedade, gerando uma pontuação”, conta o psiquiatra. Entre outras possibilidades, “há ainda como monitorar com dados de GPS ou acelerômetro para medir atividade daquele paciente, o que permite estimar fadiga ou cansaço. Isso é fenotipagem digital e é um recurso com potencial para agregar na análise de para um diagnóstico”, completa Thiago Fernando.

Indo além dos sinais fisiológicos, algumas tecnologias consistem em oferecer chatbots de atendimento ao paciente, essa solução tem sido pensada para pessoas com ideação e/ou comportamento suicida. No entanto, apesar do grande potencial, “essas tecnologias ainda não estão realmente preparadas para essa para lidar com esse tipo de situação, ainda estamos com um monte de estudos em andamento para mostrar a efetividade desse tratamento”, explica Thiago.

Por outro lado, a Otsuka America Pharmaceutical e a Click Therapeutics uniram-se para desenvolver tecnologias como o app Rejoyn, que é um dos primeiros aplicativos aprovados pela agência reguladora de saúde americana, Food and Drug Administration (FDA). 

A solução é pensada para pacientes em tratamento do transtorno depressivo maior e só pode ser utilizado mediante prescrição médica, para adultos de 22 anos ou mais. A proposta é oferecer treinamento cognitivos e orientações terapêuticas referentes à depressão maior. Dentro do padrão-ouro, o Rejoyn é utilizado junto de medicamentos e orientação de profissionais. 

Ainda na linha do digital, os criadores do Rejoyn também estão desenvolvendo ferramentas para pacientes com insônia crônica. O relógio digital chamado “nightwork” ajuda a tratar pesadelos causados pelo transtorno de estresse pós-traumático. 

“[O relógio] faz o monitoramento da experiência fisiológica do paciente enquanto ele está dormindo e identifica quando esse sujeito começa a ter pesadelos ou sonhos perturbadores. Quando isso acontece, ele envia algumas vibrações para acordar o paciente, então funciona como coadjuvante do tratamento e acaba sendo uma possibilidade muito muito interessante”, afirma o sócio-diretor da Ethos Psiquiatria.

Portanto, em geral, os aplicativos e os wearables cumprem a função de orientar o paciente em sua jornada de cura, o que costuma ser feito através do mapeamento de comportamentos, sinais e sintomas. 

Psiquiatria Computacional

Um dos desafios da psiquiatria é a dificuldade de quantificar o impacto de cada sintoma. Quanto houve de declínio cognitivo em um paciente? Quanto de angústia ele está sentindo? Questões como essas agora conseguem ser respondidas através da psiquiatria computacional.

Para entender melhor essa questão, entrevistamos uma das pioneiras desse segmento: a psiquiatra, neurocientista, pesquisadora e cientista-chefe da Mobile Brain, Natália Bezerra Mota, que foi indicada e vencedora de diversos prêmios ao redor do mundo, além de ter sido citada pelas revistas Forbes e Nature como uma das “20 mulheres mais poderosas do Brasil”.

A psiquiatria computacional consiste em análises da complexidade da fala, com o intuito de rastrear e acompanhar sinais de sofrimento mental, desenvolvimento ou declínio cognitivo e de aprendizado, além da investigação de relatos de sonhos e correlatos eletrofisiológicos.

Por exemplo, imagine detectar se um paciente terá o diagnóstico de transtorno bipolar ou esquizofrenia logo no primeiro surto psicótico. A psiquiatria computacional permite esse feito. No entanto, nesse momento, a atenção da pesquisadora está em otimizar essa tecnologia para acompanhar o desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes, em um estilo semelhante ao que se faz em um pré-natal, por exemplo.

“O primeiro produto da Mobile Brain é o LitMetrix e tem como foco a escolarização”, conta Natália. Funciona da seguinte maneira: com um conjunto de métricas elaboradas a partir de histórias contadas por estudantes, o LitMetrix monitora a complexidade da narrativa das crianças. Assim, é possível prever se o desenvolvimento da fala, leitura, imaginação e raciocínio está de acordo com o esperado para cada idade. 

Em um primeiro olhar, a tecnologia parece ter como intuito apenas a educação. No entanto, “o desenvolvimento cognitivo adequado no começo da vida é um dos elementos que preserva a saúde mental ao longo da vida, além de desacelerar o processo de declínio cognitivo no fim da vida”, conforme explica a especialista. 

Embutido nisso, está o segundo produto da startup: o Cognix, um recurso que também faz o processamento de linguagem natural, mas considera a expressão emocional gerada a partir da visualização de imagens. 

Tudo isso é fruto de percepções que Natália teve logo no período de residência em psicopatologia: “Na época que estudava a psicopatologia me caiu uma ficha: temos outros aspectos que não são do conteúdo da fala, mas sim quanto à forma como falamos. São características que geram muita descrição de sintomas”, conta Natália. 

A título de exemplo, ela relata: “Por exemplo, me chamava muita atenção a diferença da psicose que tem um pior prognóstico, que é a psicose não-afetiva (conhecida como esquizofrenia) que a pessoa apresenta muito cedo um declínio cognitivo muito intenso e acaba perdendo o contato social, além de várias habilidades de comunicação. É muito diferente de outras psicoses, no caso aquelas que tem outros desfechos, como o transtorno bipolar, que pode ser transitório e o que acontece na verdade é uma flutuação de humor, que impacta menos a cognição e permite uma reabilitação mais fácil. Ou seja, é mais fácil dela se reinserir na sociedade. Em contrapartida, é mais fácil para a pessoa que teve um diagnóstico de esquizofrenia muito precocemente que ela deixe de estudar”.

O estudo “Mapeamento mental através da análise computacional do discurso”, realizado por Natalia Bezerra Mota em 2017, está disponível aqui.

A descoberta de novos biomarcadores

As tecnologias apresentam um grande potencial, mas ainda não devem tornar-se protagonistas dos tratamentos. Para o futuro, a descoberta de biomarcadores e diferentes biotipos dentro de uma mesma doença podem permitir o desenvolvimento de medicamentos mais assertivos. 

Nesse campo, uma das principais novidades refere-se a um estudo publicado recentemente na revista Nature Medicine. A pesquisa “Personalized brain circuit scores identify clinically distinct biotypes in depression and anxiety”, detectou diferentes circuitos cerebrais, que permitiram dividir os participantes em seis tipos diferentes de depressão e ansiedade. 

Ademais, existem ainda outros estudos que fizeram descobertas relevantes nos últimos anos. Por exemplo, conforme publicado no portal “Progress In Mind” – do Brazil Psychiatry & Neurology Resource Center –, a glutamina pré-frontal aumentada é um indício de início de fases nos transtornos de ansiedade e de humor. 

Neurodireitos 

Por fim, todas essas novidades são uma forma de renovar as esperanças quanto à cura de transtornos mentais.  No entanto, a parte tecnológica traz consigo um novo receio: a questão dos neurodireitos

Os neurodireitos dizem respeito a um conjunto de princípios éticos e legais que visam proteger a integridade e a privacidade do cérebro humano diante dos avanços da neurociência e das neurotecnologias. Em geral, a ideia é garantir que as novas ferramentas sejam utilizadas de forma ética e responsável, sem infringir os direitos fundamentais das pessoas. Mas, afinal, o que estaria no cerne desses direitos fundamentais? 

Nesse aspecto, podemos dividir em dois campos principais: a violação de dados que pode gerar discriminação e a que pode gerar interferências no pensamento e/ou estilo de vida. Em vigor desde agosto de 2021, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) já traz para os holofotes como esses dados podem ser utilizados para discriminar candidatos em processos seletivos e demais decisões no mercado de trabalho. 

No entanto, a preocupação de Emi Mori – psiquiatra forense e sócia-diretora da Ethos Psiquiatria – é outra: “Quando a gente fala da privacidade mental existe a parte cerebral, mas também existe o consciente. Cérebro e consciência não são sinônimos. Precisamos de um cérebro íntegro, sem nenhum tipo de lesão, sem nenhuma alteração funcional, para que o nosso consciente possa se manifestar. Quando falamos de consciência, estamos nos referindo às nossas vontades, opiniões e desejos. Tudo isso é uma manifestação”, explica. 

Em outras palavras, o receio é quanto a interferência excessiva na consciência. Logo, a questão se complica ainda mais com a crescente sofisticação da neurotecnologia. Mori observa que, embora ainda não possamos mapear com precisão como as diferentes partes do cérebro correspondem a emoções ou pensamentos específicos, a possibilidade de acessar dados cerebrais suscita preocupações significativas sobre a privacidade mental. 

“Nós ainda não temos um entendimento exato de como essas áreas cerebrais se manifestam e como a neurotecnologia pode acessar essas informações”, afirma ela. 

Embutida nessas questões, a interação entre consciência, inconsciente e pré-consciente traz desafios adicionais. Tais camadas podem ser impactadas por aplicativos e tecnologias, que potencialmente acessam informações sobre nossos estados mentais. O acesso ao inconsciente, tradicionalmente explorado através de métodos como a análise de sonhos, pode, teoricamente, ser afetado pela neurotecnologia.

Como o usuário pode se proteger?

Mori sugere que, em vez de focar apenas na análise de imagens cerebrais, deveríamos concentrar nossos esforços na proteção da privacidade mental, que inclui a proteção de opiniões, desejos e preferências pessoais. O desafio é: como garantir que essas informações permaneçam privadas, mesmo quando usamos redes sociais e aplicativos de saúde mental?

Com o uso intensivo de redes sociais e aplicativos de compartilhamento de informações, o espaço onde se situam nossas vidas privadas e públicas tornou-se nebuloso. “Quando você cria um perfil público, mesmo que seja profissional, você está expondo a sua imagem e respondendo a informações pessoais sobre si mesmo”, explica a psiquiatra. “Até mesmo essa exposição voluntária, embora muitas vezes consciente, levanta questões sobre o controle que realmente temos sobre as informações que compartilhamos”.

Mesmo assim, um estudo australiano mencionado por Mori revela uma realidade preocupante: muitos aplicativos de saúde mental não oferecem proteções robustas para os dados dos usuários. 

A pesquisa, publicada em um jornal de psiquiatria em 2019, analisou 60 aplicativos voltados para a avaliação do estado mental, meditação e outros usos relacionados e encontrou deficiências significativas nas medidas de proteção de dados. 

Além disso, Mori aponta a questão dos contratos de serviço, frequentemente aceitos sem a devida leitura das entrelinhas. “Quando aceitamos os termos de serviço, raramente lemos o que está por trás do ‘aceitar’. E, mesmo quando lemos, não sabemos exatamente para onde nossos dados estão indo ou como serão compartilhados”, observa ela. Este comportamento comum exemplifica a necessidade urgente de maior transparência e controle sobre nossos dados pessoais” conclui a especialista.