É evidente que a saúde passa por uma crise sem precedentes, que foi intensificada com a pandemia, e há uma necessidade de mudança, questionando-se sobre a possibilidade de um modelo de saúde baseado em valor. O Brasil passa por um cenário de sinistralidade recorde e as operadoras registraram um prejuízo operacional de R$ 10,7 bilhões em 2022. Um dos principais fatores estruturais que, em última instância, acarretam esse cenário de ineficiência, é o fee for service, modelo predominante que remunera a partir do serviço, priorizando a quantidade de procedimentos ao invés dos desfechos clínicos.
O conflito de interesses existente entre a operadora e os prestadores de serviços pode ser resumido da seguinte maneira: de um lado, as operadoras, para não ter um custo operacional muito alto, querem reduzir o uso da rede credenciada; enquanto isso, no fee for service, os prestadores, como os hospitais, são pagos por procedimento executado, o que torna financeiramente vantajoso a realização de vários procedimentos. Segundo o IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar), de 2014 para 2019, o número de procedimentos assistenciais aumentou em 19,6%, apesar de uma queda de 6,1% no número de beneficiários durante esse período. Ainda, o Instituto ressalta um levantamento na revista Consumidor Moderno que apontou o Brasil como um dos países que mais realizam exames médicos no mundo.
Dado esse cenário de crise, crescem as discussões sobre possibilidades de modelos mais sustentáveis e eficientes para a saúde. Entre eles, há um destaque para o debate sobre o value based healthcare (VBHC), que seria um modelo cuja remuneração se dá a partir do desfecho clínico e conclusão do tratamento, avaliando a qualidade de vida do paciente depois de todo o procedimento. Entende-se que esse modelo levaria a uma gestão de recursos mais eficiente, evitaria os desperdícios característicos do fee for service e seria mais transparente com o resultado de saúde entregue ao paciente, além de possivelmente estimular um cenário de competitividade interessante ao vincular pagamento a resultado.
O value based healthcare no mundo
O modelo de value based healthcare foi inicialmente desenvolvido no livro “Repensando a Saúde: estratégias para melhorar a qualidade e reduzir os custos” por Elizabeth Teisberg e Michael Porter. No entanto, existem alguns desafios que variam dentro de cada país. Em um artigo publicado em 2020 na revista NEJM Catalyst, pesquisadores fizeram uma análise de diferentes sistemas de saúde – em Massachusetts (EUA), Holanda, Noruega e Inglaterra – abordando diferenças estruturais entre eles e as variações nos programas utilizados para gerar valor na saúde, levantando insights sobre alguns desafios e sobre a implementação do modelo de value based healthcare mundo afora.
O artigo ressalta que nos últimos 15 anos, vários sistemas de saúde no mundo começaram a adotar agendas VBHC, por razões distintas e utilizando diferentes fundamentos, de forma que o papel dos governos, provedores e pagadores privados possui variações. Nos Estados Unidos, por exemplo, os pesquisadores indicam que iniciativas de adoção do modelo de value based healthcare estão mais vinculadas ao afastamento do fee for service e seus desperdícios. Enquanto isso, na Europa, demarcada por sistemas mais públicos, há um foco maior na coordenação do atendimento ao paciente entre os provedores e na melhoria da qualidade e adequação do cuidado.
É ressaltado pelo estudo que nenhum país implementou totalmente a agenda VBHC, mas foi avaliado pelos pesquisadores que os elementos da estrutura teórica do modelo pareceram funcionar melhor em alguns sistemas de saúde. O estudo evidenciou que sistemas administrados pelo governo tendem a ter mais sucesso para iniciar centros de excelência. Em suma, os interesses divergentes entre os provedores privados dificultam a adoção de sistemas baseados em valor, sendo o envolvimento do governo na organização do cuidado um elemento chave. Outro desafio levantado é a importância da infraestrutura de TI para integração dos sistemas e medição dos resultados ao longo de todo o ciclo de atendimento, o que não apresentou um resultado tão bom nos sistemas administrados pelo governo.
Por fim, o último ponto destacado foi a instituição de uma cultura VBHC entre os provedores, que vai de encontro com a atual mentalidade que ainda passa por um processo de maturação. Essa mentalidade ainda é muito voltada para o fee for service, em que a doença é o modelo da receita. Apesar da implementação da estrutura de cima para baixo (top-down) ser uma tendência, o estudo ressalta que existe um risco de resistência vinda de partes importantes, como os médicos, os quais precisam se engajar nessa implementação. Os pesquisadores ressaltam que para superar essa resistência e envolver a comunidade médica em uma possível mudança de modelo, a cultura VBHC precisa ser mais difundida.
O cenário e os desafios do value based healthcare no Brasil
Em 2019, a ANS divulgou um Guia para Implementação de Modelos de Remuneração Baseados em Valor, discorrendo sobre alguns desafios e possíveis medidas para lidar com eles. Ainda, a agência também tem se voltado para estimular debates sobre o tema no setor e apoiar operadoras com projetos inovadores de remuneração baseada em valor. No entanto, ainda não houve a implementação de uma diretriz por parte do governo para mudar o modelo do sistema, que foi construído em torno do fee for service.
No Guia da ANS, são destacados os seguintes desafios para a implementação de modelos VBHC: resistência dos prestadores de serviços quanto a um modelo diferente de pagamento; risco de implementar um modelo inovador sem haver um certo nível de organização, podendo impactar na qualidade e segurança dos serviços; ausência de sistemas de informação; necessidade de capacitar os profissionais envolvidos e estruturar um sistema de gestão dos serviços de saúde eficiente que acompanhe os indicadores de saúde, entre outros pontos.
Além disso, a ANS indica alguns problemas com relação ao desenho do novo modelo de remuneração, como a impossibilidade de cobrir custos adicionais que fazem parte da transição para o novo modelo, a falta de reservas financeiras para gerir um aumento do risco, a falta de dados e a falta de interesse em fazer as devidas mudanças para se ter sucesso na melhoria da qualidade. Contudo, a agência também ressalta alguns caminhos necessários em prol dessa transição para melhoria de todo o sistema, que são: o envolvimento dos prestadores na construção do projeto de implementação do novo modelo de remuneração; a padronização de projetos e medidas adotadas; a concessão de permissão aos prestadores quando ao acesso dos dados apurados pela operadora sobre os cuidados que seus pacientes estão recebendo; a redução de riscos financeiros mais altos para os prestadores no momento inicial da implantação do modelo novo; e, por fim, a revisão dos contratos que estabelecem barreiras para incorporar o novo modelo.