Uma mistura de seguro de saúde e fintech, essa era a ideia para o Xiang Hu Bao (XHB), o programa de assistência mútua desenvolvido pela Ant Financial, braço financeiro do Alibaba Group, em 2018.
Em chinês, “Xiang Hu Bao” significa ‘proteção compartilhada’ e consistiu em uma espécie de consórcio para indenizar e atender pessoas com até 100 tipos de doenças críticas – como câncer de tireoide, de mama, pulmão, lesão cerebral grave, entre outras.
Na época, a inauguração do XHB foi o resultado da tendência de envelhecimento da população – que, consequentemente, pressiona ainda mais os sistemas de saúde –, combinado a um período de ascensão das insurtechs – termo utilizado para descrever startups de seguros que utilizam tecnologias para dar vida a estratégias inovadoras.
Mas, afinal, o que há de diferente no XHB?
Como funcionava
No Brasil e na maioria dos países, o mais comum são seguros de saúde que exigem um tempo de pagamento prévio antes que seja possível conseguir alguma compensação. No entanto, o Xiang Hu Bao não funcionou assim.
Sendo uma plataforma para ajuda mútua, onde os membros se uniam para compartilhar os custos associados ao tratamento de doenças críticas, o XHB permitia que membros recebessem pagamentos indenizatórios logo ao aderir o programa. Assim, a plataforma pagava indenização para membros que fossem diagnosticados com uma das 100 doenças críticas incluídas na cobertura – como vários tipos de câncer e lesões cerebrais graves.
Nesse sentido, o valor de cobertura variava de acordo com a idade: os participantes com menos de 40 anos podiam receber até CNY 300.000 (R$ 251.188,56), enquanto aqueles com 40 anos ou mais se qualificavam para CNY 100.000 (R$ 83.719,87).
Para pagar indenizações em quantias como essas, cada membro contribuia com 0.03 yuan (R$ 0,8344) a cada duas semanas, além de uma taxa administrativa de 8% – um valor que foi aumentando ao longo do tempo e das mudanças na taxa de sinistralidade.
Já para tornar-se membro do XHB, o principal critério de elegibilidade era ser uma pessoa com idade entre 30 dias e 59 anos, mas, desde que atendesse aos critérios básicos de saúde e risco. Devido à amplitude dos critérios e o baixo custo, o acesso era fácil e motivou muitas pessoas a participarem, o que contribuiu para o rápido crescimento da plataforma.
O modelo de negócio do XHB
No modelo de negócio do Xiang Hu Bao, para conseguir manter um seguro de saúde sem coletar prêmios antecipados, a estratégia consistia em apoiar-se na possibilidade de ter um grande número de membros, o que permitiria balancear os riscos. Assim, com uma estratégia focada em adesão, em menos de um ano já havia adquirido 100 milhões de membros.
Considerando que a China possui 1.4 bilhões de pessoas – o segundo país mais populoso do mundo, perdendo apenas para a Índia –, a quantidade de pessoas parecia ser um ponto positivo para um seguro como o XHB.
No início, o objetivo era alcançar cerca de 300 milhões de usuários, uma quantidade equivalente a 20% da população. No entanto, de 2018 a 2022, a quantidade variou de 97 milhões até 150 milhões. Após um início de números expressivos, o entusiasmo do público foi diminuindo ao longo dos meses.
O que aconteceu?
Bom, se você esteve atento ao longo desse texto, deve ter percebido que falei do Xiang Hu Bao no passado. Então, sim, o seguro foi encerrado. O fim aconteceu em 2022, após diversos fatores mostrarem como o XHB era um modelo de negócio insustentável e de ter entrado na mira dos órgãos reguladores.
Na perspectiva dos pesquisadores Hanming Fang, Xiao Qin, Wenfeng Wu e Tong Yu, apresentada neste artigo, os fatores que causaram o fim do XHB foram:
- pressão regulatória;
- modelo de negócio dependente de crescimento;
- baixa taxa de contribuição;
- elevado risco de fraude e seleção adversa.
No que se refere às questões regulatórias, a pressão das autoridades sobre a proteção do consumidor e a solvência financeira foi um dos principais fatores para o fim do programa. Entre os argumentos, foi apontado que a ausência de regulamentação formal e as práticas de "inovação imprópria" podiam comprometer os direitos dos consumidores e a estabilidade do mercado.
Além disso, o modelo de pooling de risco do XHB dependia de um crescimento constante para manter o equilíbrio entre receitas e despesas. Após um aumento expressivo no número de membros nos primeiros anos – mais de 12 milhões nos primeiros 10 dias e ultrapassando 100 milhões em seu pico – o crescimento desacelerou até que, em 2020, tornou-se negativo. Esse cenário levantou dúvidas sobre a capacidade do seguro de manter a quantidade de pessoas saudáveis necessárias para cobrir as reivindicações.
Junto a isso, havia ainda a taxa de contribuição em um valor muito baixo, um elemento que também comprometeu a acumulação de reservas financeiras. Embora essa precificação tenha funcionado por um tempo – permitindo que o XHB pagasse mais de 20 bilhões de yuans em indenizações ao longo de sua história – também tornou inviável a sustentabilidade financeira no longo prazo.
Em paralelo, o risco de fraudes e seleção adversa também estava aumentando. Isso aconteceu porque o modelo atraía cada vez mais pessoas com condições graves de saúde. Assim, os valores gastos com as reivindicações começaram a ultrapassar a quantidade arrecadada com contribuições.
Nesse sentido, de início as reivindicações eram relativamente baixas, o que ajudava a manter as contas balanceadas. No entanto, conforme os valores eram reajustados, o público jovem e saudável foi perdendo o interesse em contribuir, alimentando no XHB um momento de perda de membros.
Entendendo o mutualismo na Saúde
O conceito de mutualismo é comum em ramos nos quais existem grandes riscos. Trata-se de um conceito antigo e "igual no mundo inteiro, que surgiu a partir da necessidade de dividir riscos em contextos catastróficos, como as navegações na época das caravelas", explica Rogério Scarabel, advogado especialista em saúde, ex Diretor Presidente Substituto da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e Advisor da Green Rock.
A título de exemplo, o advogado conta que "quando um barco se perdia, o prejuízo era enorme. Então, os donos começaram a criar grupos para financiar as viagens coletivamente, reduzindo o risco de perdas totais”.
Logo, no setor da saúde, o mutualismo segue a mesma lógica: um grupo contribui financeiramente, mesmo sem utilizar os recursos de imediato, para cobrir eventos de alto custo para os poucos que necessitam.
No entanto, vale atentar-se, porque “plano de saúde e mutualismo não são poupança. O dinheiro não é capitalizado para o futuro. Ele é usado para cobrir necessidades catastróficas, como internações de alto custo ou cirurgias complexas”, explica o advogado. Assim, “se apenas as pessoas que planejam utilizar os serviços entrarem no sistema, ele se torna insustentável”, completa Scarabel.
Esse fenômeno, conhecido como seleção adversa, pode minar o equilíbrio financeiro necessário para que o mutualismo funcione. “Você precisa de muita gente contribuindo e pouca utilização para o modelo ser viável. Caso contrário, o sistema entra em colapso”, aponta o advogado.
Xiang Hu Bao x Seguros no Brasil
Quando comparado ao que vemos no Brasil, o Xiang Hu Bao apresenta diferenças fundamentais entre saúde suplementar e o SUS. “No SUS, você tem duas fontes de pagamento: o rico paga pelo pobre e o mais novo pelo mais velho”, explica Rogério Scarabel.
Enquanto isso, o setor privado brasileiro mantém contratos com prazos definidos e que são desenhados para atender eventos catastróficos. “Um plano de saúde não é uma poupança. O dinheiro que você paga mensalmente é para custear a necessidade de outros. E, no futuro, quando você precisar, outras pessoas estarão pagando por você”, reitera Scarabel.
Assim, uma das lições mais importantes que o Xiang Hu Bao mostra é a importância de estruturar sistemas com uma base ampla de contribuintes, combinada com mecanismos de regulação que minimizem o uso indevido. Como destaca o advogado, “o mutualismo é, antes de tudo, um ato de solidariedade coletiva. Ele depende de confiança e de um equilíbrio rigoroso entre contribuição e utilização”, conclui Scarabel.
No fim, o Xiang Hu Bao buscou preencher uma lacuna na cobertura de saúde da China. E de fato, por um tempo conseguiu ajudar milhares de pessoas. Entretanto, seu encerramento sugere que existem limites para a inovação no setor de seguros. Sem um arcabouço regulatório estruturado e um modelo de negócios financeiramente viável, a sustentabilidade de longo prazo pode não acontecer.