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Biotecnologia no Brasil: tendências e desafios do mercado em 2024

Outras doenças ganham os holofotes, diferença entre techbio e biotech, dificuldades de captação de recursos e o que deve mudar no mercado de biotecnologia no ano que se inicia

Letícia Maia
15min

A chegada de 2024 pode indicar um período delicado para quem trabalha com biotecnologia. É fato que, o mercado brasileiro de biotechs nunca alcançou o cenário ideal. No entanto, importantes avanços aconteceram, principalmente a partir de 2020, quando a pandemia por Covid-19 inaugurou uma nova corrida pela sobrevivência coletiva. 

Porém, a situação atual não é delicada apenas para a indústria brasileira. Após a JP Morgan Healthcare Conference, realizada entre os dias 8 e 11 de janeiro deste ano, na Califórnia (EUA), a conclusão dos especialistas é de que há um “otimismo cauteloso” no ar em todo o setor. 

Os motivos para isso estão nas últimas principais movimentações do mercado. Entre os aspectos negativos, podemos citar:

  • Em 2023 as empresas de biotech presentes na bolsa de valores viram queda no preço de compra de ações. Especialistas associam o cenário às expectativas associadas aos medicamentos como Wegovy e Ozempic, além do aumento da taxa de juros nos Estados Unidos; 
  • Demissões em massa ocorreram em mais de 150 empresas farmacêuticas;
  • Consequências do colapso do Silicon Valley Bank respinga nas biotechs;
  • Decisão da Comissão Federal de Comércio dos EUA de processar a Sanofi, alegando que a marca estaria eliminando a concorrência e criando um monopólio caso adquirisse a Maze Therapeutics;

Em paralelo, os acontecimentos positivos foram:

  • Estrondoso sucesso de vendas do medicamento semaglutida (também conhecido pelo nomes Ozempic, Wegovy e Rybelsus), indicado para doenças metabólicas como diabetes tipo 2 e obesidade;
  • Diversas novas aquisições feitas pela indústria farmacêutica em 2023;

Junto a isso, a expectativa do mercado também está nas próximas decisões da Food and Drug Administration (FDA), órgão regulador de Saúde dos Estados Unidos, que em breve decidirá sobre novos tratamentos contra Alzheimer e alguns tipos de cânceres.

Outra movimentação relevante ocorreu na última semana de janeiro deste ano, quando surgiu mais um sinal positivo: a americana CG Oncology, que desenvolve terapias direcionadas principalmente para pacientes com câncer de bexiga não-invasivo muscular, estreou na bolsa americana arrecadando 380 milhões de dólares em ofertas públicas iniciais (Initial Public Offering, em inglês).

Além disso, um relatório da PwC aponta que a indústria biofarmacêutica deve movimentar entre 225 e 275 bilhões de dólares em 2024. A conjuntura desses elementos leva a algumas tendências inéditas. Veja abaixo.

Tendências

1. BioTech x TechBio

O amadurecimento dos mercados culminou na criação de um novo termo: tecnologia bio (techbio). Essa inversão entre ‘bio’ e ‘tech’ pode não passar muita confiança logo de início, mas a justificativa se mostra plausível e importante para os próximos passos do setor. 

Biotecnologia é um termo que abrange inovação não só em Saúde, mas também desenvolvimento de recursos para otimizar o setor agrícola, industrial, ambiental e até animal. Por isso, quando direcionamos o olhar para as empresas de biotecnologia de saúde, há o que chamamos de “bio therapeutics”. Termo destinado para empresas focadas no desenvolvimento de medicamentos cuja produção é baseada em fontes biológicas e não sintéticas.

Dessa forma, techbio seria uma nova ramificação do segmento. Isso porque o termo refere-se às empresas que desde o início focam em coletar, tratar e integrar dados biológicos, com o propósito de gerar outros compostos ativos. É comum também que essas iniciativas apoiem-se em softwares de inteligência artificial para otimizar o processo. 

Quando esse tipo de ‘especiação’ acontece – isto é, a criação de uma nova espécie –, surge também a necessidade de estabelecer novas métricas, para que o mercado avalie as startups de maneira justa e assertiva. Nesse sentido, Lucas Ariel, um dos fundadores da Mirscience Therapeutics, e Pedro Penna, fundador da NAIAD Drug Design, concordam que a compreensão sobre o setor é uma das maiores dificuldades quando se trata de captar investimento, o que poderia ser facilitado com o estabelecimento de métricas adequadas para cada sub-segmento dentro do que chamamos de biotecnologia. 

Em seu blog pessoal, o fundador e chefe de pesquisa da startup NewLimit, Jacob Kimmel, sugere três critérios para incluir uma iniciativa nesse novo termo: 

  • Empresas de tecnologia bio são aquelas que constroem um ‘modelo in silico’ – isto é, um sistema computacional capaz de desenvolver modelos de processos farmacológicos. Segundo um artigo, de pesquisadores da University of Virginia Health System (EUA), esse modelo seria uma forma de extensão das experimentações controladas ‘in vitro’ – isto é, feita no tubo de ensaio em laboratório. Assim, é possível prever o efeito da molécula em diferentes parâmetros. 
  • As techbios coletam e fazem a curadoria de base de dados, descrevendo de forma precisa e completa diferentes sistemas biológicos;
  • Partindo de modelos de predição e validação, essas organizações geram valor ao processo de pesquisa clínica: podem torná-la mais rápida, barata ou eficaz.

A diferenciação serve também para ajudar a estabelecer métricas assertivas o suficiente para captar investimento. “Enquanto as biotechs são empresas com foco em técnicas clássicas de bioquímica e farmácia, as ‘techbios’ focam em integrar intensivas análises de data science com as técnicas clássicas. Dentro dessas empresas falamos de diversas métricas, então não somente potência e segurança de possíveis novas drogas, mas também avaliamos a escalabilidade que técnicas computacionais e dados específicos podem gerar no processo como um todo", explica Pedro Penna, da NAIAD Drug Design. Ou seja, elas respondem às perguntas de:

  • Como a plataforma valida ou propõe alvos de interesse?
  • Como a plataforma propõe novas moléculas que alterem a função de alvos de interesse?
  • Quão escalável é a plataforma, em relação a propor novos alvos e/ou identificar novas drogas para estes alvos em questão?
  • Que vantagens a plataforma pode trazer em relação a técnicas clássicas do desenvolvimento de fármacos? (Ex: velocidade de desenvolvimento, redução de custos, acesso a estruturas químicas novas e com grande tratabilidade química, entre outros).

2. Diferentes tipos de doenças ganham destaque

Já no que se refere às ‘doenças-alvo’ do mercado de biotecnologia, as mudanças estão associadas ao envelhecimento populacional, “o que torna esse mercado de longevidade tão em alta”, diz Lucas Ariel, fundador da Mirscience Therapeutics

Portanto, na visão do pesquisador, “o câncer sempre vai ser uma doença em alta, porém agora estará junto das doenças metabólicas, musculares e neurológicas”, completa. No entanto, os cânceres em especial passam por  importantes transformações em seu panorama. 

A começar pela breve diminuição do protagonismo, que começou durante a pandemia: entre 2020 e 2021, a crise da Covid-19 fez com que os investimentos em pesquisas oncológicas fossem reduzidos em 9% (em comparação aos anos de 2018 e 2019), segundo o National Cancer Research Institute (NCRI), do Reino Unido.

Mesmo assim, os investimentos realizados ao longo de todos os anos pré, durante e pós-pandemia parecem ter sido bem aproveitados. Um sinal disso é que o câncer está cada vez menos mortal, conforme indica o relatório de 2024 da American Cancer Society (ACS). 

Por outro lado, embora mate menos, o câncer tende a atingir cada vez mais pessoas. Ainda segundo os dados da ACS, enquanto ao menos 4 milhões de mortes por câncer foram evitadas nos Estados Unidos, de 1991 até os dias de hoje, os novos diagnósticos devem atingir 2 milhões neste ano. Em outras palavras, seria o equivalente a 5.480 novos laudos por dia ou um novo caso a cada 15 segundos. No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (INCA), estima 704 mil novos casos para os anos entre 2023 e 2025. 

Seguindo nesse ritmo, “o câncer passa cada vez mais a se tornar uma doença crônica”, afirma Rogério Vivaldi, médico especialista em doenças raras, responsável por emplacar 26 novos medicamentos no mercado e ex-líder de startups como Spark Therapeutics, Bioverativ e Sigilon – que posteriormente foram adquiridas pelas farmacêuticas Roche, Sanofi e Eli Lilly.

Vivaldi explica que “a palavra câncer engloba uma ideia muito ampla, mas se você for no tipo específico, ele pode acabar por ser um conjunto de doenças raras. Porque é uma doença molecular, então se você vai ter tratamentos que atendem aquele problema molecular, a metodologia e a mentalidade de doença rara se aplica também ao câncer”. Tudo isso significa que, encontrando soluções para um tipo de doença, é possível encontrar caminhos para solucionar outras também. 

Na ciência, os conhecimentos integram-se uns aos outros, motivo pelo qual investir em pesquisas para outras doenças é importante também. Ademais, o cenário atual e futuro das doenças neurodegenerativas e metabólicas também clama por medidas urgentes. 

De acordo com o relatório da Global Burden of Diasease (GBD), publicado no Lancet Public Health, até o ano de 2050 a demência deve triplicar entre os adultos com 40 anos ou mais. Trata-se de um cenário em que os números saem dos cerca de 57 milhões de casos em 2019, para 153 milhões. Especificamente no Brasil, a estimativa é de um aumento de 206% em novos casos, podendo atingir o patamar de 5,6 milhões de pessoas diagnosticadas com a condição até o meio do século. 

Já no que se refere às doenças metabólicas, houve um aumento constante no mundo todo, ao longo de 2000 a 2019, indica outro relatório da GBD, publicado no Cell Metabolism. Entre os destaques da pesquisa, está que diabetes tipo 2 e obesidade foram doenças metabólicas que viram pouca redução na mortalidade ao longo desses anos – enquanto a hipertensão e outras tiveram uma diminuição discreta em certos períodos. 

Em suma, a demanda por novas terapias não irá cessar em um futuro tão próximo.

3. A corrida pelo novo “ozempic”

Os medicamentos baseados no princípio ativo da semaglutida fizeram sucesso o suficiente para estabelecer um novo patamar na indústria farmacêutica. Por exemplo, a tecnologia revolucionária do Ozempic, desenvolvido para ajudar na perda de peso e tratamento de doenças metabólicas, foi capaz de retirar a LVMH – grupo de bens de luxo liderado por Bernard Arnault – da posição de empresa mais valiosa da Europa, colocando no lugar sua fabricante dinamarquesa Novo Nordisk.

Além disso, só no terceiro trimestre de 2023, a farmacêutica conseguiu 1,3 bilhão de dólares em lucro líquido. Não à toa que a empresa alcançou 460 bilhões de dólares em valor de mercado. Dados os resultados estrondosos, diversas startups começaram a ir em busca de uma tecnologia “ozempic” para chamar de sua. 

Expectativas para o ano

“Desde a Covid-19 houve uma redução muito grande no financiamento da maioria das biotechs, de forma como eu nunca vi nos últimos 20 anos. Há uma dificuldade muito maior em financiar uma uma quantidade de dinheiro muito menor, além da perda de valor de grandes empresas. Tudo isso fez com que os investidores perdessem muito dinheiro”, explicou Rogério Vivaldi quando questionado sobre as perspectivas para o ano que se inicia.

O especialista em doenças raras continua, afirmando que “2024 tende a ser um ano de retomada, mas precisamos ter noção de custo-eficiência. Ou seja, entender como utilizar o dinheiro da melhor forma possível, porque o dinheiro não será como era 6, 10 anos atrás, naquela época era muito mais fácil de levantar fundos”. 

Nesse sentido, o especialista reforça que investidores do mercado de Saúde precisam ter pleno conhecimento de como alocar os recursos da melhor forma, avaliando se a mão de obra escalada para o trabalho é a melhor em talento e custos. “Talvez isso seja uma grande vantagem do Brasil, nós temos custos menores com mão de obra científica”, completa Vivaldi.

Mas por que é difícil captar investimentos? 

Em 1999, o governo brasileiro publicou o que hoje chamamos de “Lei dos Genéricos”, que autorizava qualquer laboratório a comercializar medicamentos com patentes expiradas. Sendo relativamente recente, a decisão ainda é uma das que ocupa o holofote na indústria biofarmacêutica do Brasil. 

Desde então, este ramo do mercado se expande ano a ano. Para se ter ideia, a PróGenéricos indica que o setor, que conta com 88 fabricantes no Brasil, faturou cerca de 15,3 bilhões de reais em parcerias público-privadas (PPP) só no ano de 2022. No mesmo ano, as vendas aumentaram 7%, quando comparado a 2021, atingindo o marco de 1,8 bilhões de caixas vendidas. Mesmo assim, o mercado de genéricos ainda equivale a 35% da indústria no Brasil, contra os 90% vistos nos Estados Unidos.

Por outro lado, o investimento nesse segmento acaba por ofuscar as iniciativas que desenvolvem novos tratamentos. “O problema é que a área de genérico por si só já gera muito dinheiro. Além disso, na iniciativa privada, os investidores não acompanham muito o segmento, então também não entendem muito e como já se ganha dinheiro com outras coisas, o apetite para o risco diminui”, afirma Lucas Ariel, um dos fundadores da Mirscience Therapeutics

Em segundo, está o fato de que muitos não compreendem como funciona a pesquisa clínica e demais especificidades do mercado de saúde. Antes da pandemia por Covid-19, as pesquisas costumavam durar de 10 a 15 anos para desenvolver plenamente uma nova substância. No entanto, com a crise sanitária o mundo viu pela primeira vez o tempo ser reduzido de anos para meses. Porém, de modo geral, as empresas ainda dependem de extensos testes moleculares e fases de pesquisa para descobrir se uma substância é eficaz, eficiente e segura. Portanto, o tempo de desenvolvimento ainda não é curto como os investidores gostariam. 

Na realidade das startups, o conflito está em conseguir aporte enquanto em fases iniciais, visto que “os fundos de investimento de hoje estão cada vez mais seletivos, querendo empresas muito próximas das fases clínicas ou já em fase clínica. As farmacêuticas estão optando por doenças que geralmente são de grande valia para o mercado, ou seja, medicamentos que em um ano você já pode chegar a um bilhão em valor de mercado, um bilhão em vendas”, completa Lucas.

Nesse aspecto, a inteligência artificial surge como uma boa ferramenta auxiliar, mas para ter êxito depende de dados bem coletados e tratados. Na biotecnologia, essa é uma vertente em ascensão, mas não consolidada o suficiente para mudar os parâmetros do mercado neste momento. 

Por fim, Lucas alega também que é difícil para novos empreendedores compreenderem os elementos que levam um fundo de investimentos a aprovar ou não uma iniciativa. Começando no universo acadêmico, é comum que a orientação para entrar no mundo dos negócios não seja tão completa como deveria. Este seria um efeito colateral da falta de integração entre as universidades e a indústria brasileira.

Para entender melhor a questão, vale recordar um pouco do que acontecia no Brasil durante a crise sanitária, como era antes dela surgir e alguns fatores intrínsecos do mercado de biotecnologia no Brasil e no mundo.

Origem x Soluções

Quando o assunto é biotecnologia, o Brasil está longe de aparecer entre os primeiros colocados. Na verdade, segundo o relatório da revista Nature, publicado em junho de 2022, o Brasil está entre os 10 países que não possuem empresas de biotecnologia com capital aberto na Bolsa de Valores. Acompanhando os brasileiros, estão na lista: Islândia, Luxemburgo, Portugal, Estônia e outros. 

Já no quadro dos países que mais possuem biotechs com ações na Bolsa de Valores, destacam-se países como Suíça, Suécia, Estados Unidos e Israel. Porém, o que faz esses países estarem em um patamar muito mais positivo do que o Brasil? 

A resposta para essa pergunta: investimento de longo prazo, apoiado em esforços constantes de construir um ecossistema de saúde capaz de levar as descobertas feitas em laboratórios para o mercado, de forma que alcance o máximo de pessoas no menor tempo possível. 

Nos Estados Unidos,  por exemplo, o foco em biotech consegue existir graças à criação dos grandes centros de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, como o Vale do Silício, em San Francisco, o centro de biotechs em Boston e de pesquisa e maquinofatura em San Diego. Na Europa, a Inglaterra também se destaca como centro para o desenvolvimento maciço de medicamentos e descoberta de novas moléculas. 

“[...] No Brasil nunca houve realmente esse olhar para inovação radical em um plano de longo prazo. Nós temos boas universidades no Brasil, que seriam ótimos centros de pesquisa, mas a universidade acabou criando um separador de marfim muito grande que criou um pouco dessa disputa de ‘público’ versus ‘privado’, em relação aos interesses da indústria farmacêutica”, afirma Lucas Ariel, fundador da Mirscience Therapeutics, startup de desenvolvimento de medicamentos e terapias inéditas para doenças que impactam a longevidade.

Como chegamos nesse cenário? Foi pela forma como se deu o desenvolvimento da indústria no país e por não se ter uma necessidade tão forte de inovação das empresas farmacêuticas maiores – conforme explicado em trechos acima. 

Entre as possíveis medidas mais práticas para reduzir os gargalos do mercado, Penna sugere “um regime de tributação especial para startups, com foco em inovação radical na área de therapeutics, para facilitar a chegada de insumos do Brasil, sem o imposto altíssimo”. 

Outra medida poderia ser reduzir a burocracia para permitir que mudanças aconteçam. A criação de programas de integração entre farmacêuticas consolidadas e startups, por exemplo, poderiam facilitar a aquisição de grants (aporte a fundo perdido) ou financiamentos não-reembolsáveis, de forma a atender as necessidades da indústria com maior eficiência. 

“Por mais que seja difícil, o Brasil tem um potencial enorme. Nós temos empresas fazendo coisas muito interessantes nessa área de terapias, não muitas, mas algumas startups em estágio inicial. [...] Também há muita coisa interessante que é criada dentro das universidades, mas que acabam não sendo transformada em produto, ou sendo efetivamente explorada, justamente por essa falta de alinhamento, mas os recursos humanos aqui são incríveis. As grandes universidades do Brasil geram pesquisadores super relevantes e que em muitos casos precisam buscar oportunidades lá fora”, conclui Pedro Penna, da NAIAD Drug Design.