Insights

Cannabis medicinal: um novo horizonte para a saúde

Apesar dos obstáculos intimamente relacionados ao estigma do uso recreativo, o mercado de cannabis medicinal está crescendo no Brasil e no mundo, especialmente para o tratamento de condições refratárias.

Paola Costa
6 minutos

A Cannabis possui em torno de 400 componentes. Dentre eles, os dois mais populares são o tetrahidrocanabinol (THC), conhecido pelo efeito psicoativo, e o canabidiol (CBD), com características medicinais. Em 2015, a RDC nº 17 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) permitiu a importação de produtos à base de canabidiol para fins médicos. Em 2019, a agência regulamentou a concessão para fabricação e importação destes produtos de cannabis medicinal.

Muitas questões ligadas ao estigma ainda dificultam o acesso a esses produtos. Apesar disso, é um mercado com muita possibilidade de crescimento, dado que a maioria das condições tratadas com a cannabis medicinal são refratárias – ou seja, quando não há uma resposta nem mesmo com o uso de um tratamento padrão ouro – e há um avanço grande mundo afora.

Essa substância age em um sistema envolvido em muitos processos patológicos e fisiológicos, o endocanabinoide, atuando na regulação da temperatura, estresse, sistema imunológico, entre outras funções. O desequilíbrio desse sistema favorece o surgimento de doenças e, assim, a cannabis medicinal ajuda nessa regulação. Estudos indicam que produtos à base de canabidiol podem auxiliar no transtorno do espectro autista, esquizofrenia, esclerose múltipla, Alzheimer e epilepsia refratária, entre outras.

A epilepsia, por exemplo, é um distúrbio cerebral que atinge cerca de 1% do mundo e pode levar a danos cerebrais. Os pacientes refratários são aqueles que não controlam satisfatoriamente suas crises com nenhuma droga antiepiléptica. Segundo o CFM (Conselho Federal de Medicina), entre 90% e 95% dos pacientes que utilizam de duas a três drogas antiepilépticas não alcançam remissão completa das crises não controladas. Além disso, não houve um progresso significativo no controle dessas crises nos últimos 40-50 anos. Esse cenário evidencia a importância de novos tratamentos, ressaltando-se que o efeito antiepiléptico foi um dos primeiros observados da cannabis medicinal.

Avanço regulatório no Brasil

Do ponto de vista regulatório, a RDC nº 660 determinou os procedimentos para importação do produto à base de canabidiol, estabelecendo que: ela pode ocorrer por pessoa física, para o uso pessoal, a partir de uma prescrição médica; pode ser feita pelo responsável legal do paciente ou procurador legalmente constituído; ou, ainda, a importação pode ser intermediada por operadora de plano de saúde, entidade hospitalar ou unidade governamental ligada à saúde para o atendimento de um paciente já cadastrado na Anvisa.

Essas questões em torno da importação via RDC nº 660 representam um ponto que dificulta o acesso. O paciente precisa escolher entre licenciamento de importação no Siscomex, bagagem acompanhada ou via remessa expressa. Ademais, os Correios não podem transportar essas cargas, complicando esse processo.

Enquanto isso, a RDC nº 327 disponibilizou a venda de produtos à base de cannabis medicinal em farmácias, no entanto, somente mediante receita médica. Em linhas gerais, o teor de THC deve ser de até 0,2%. A regulamentação condicionou a venda à autorização prévia da Anvisa e cabe ao responsável pelo produto pleitear sua regularização. Para fabricação e comercialização, a empresa precisa importar o insumo farmacêutico como derivado vegetal, fitofármaco, a granel ou produto industrializado, não sendo permitida a importação da planta. Essa RDC permitiu a entrada de vários produtos no mercado. Ainda, a Anvisa proíbe a comercialização da planta, de cosméticos e cigarros à base de cannabis.

Em 2022, a Resolução CFM nº 2.324 trouxe alterações ligadas a vetos, especificando o uso para crianças e adolescentes com epilepsias refratárias relacionadas à síndrome de Dravet, síndrome de Lennox-Gastaut e complexo de esclerose tuberosa, excluindo outras patologias. O texto também proibiu a realização de palestras e cursos sobre esse conteúdo fora do ambiente científico, levantando oposição da comunidade médica e pacientes.

O contexto internacional da cannabis medicinal

Globalmente, a cannabis medicinal já é uma realidade em países como Alemanha, Israel, Argentina, Chile, Uruguai e Estados Unidos (mais de 30 estados), entre outros. Um relatório publicado esse ano pelo Market Data Forecast apontou que o aumento de pesquisas no campo tem gerado uma demanda pela cannabis medicinal. Ainda, o crescimento populacional e a prevalência de doenças crônicas como distúrbios cerebrais e cânceres pode impulsionar a receita nesse mercado. Outro relatório, da Fortune Business Insights, avaliou o tamanho desse mercado um pouco acima de US$ 6 bilhões em 2018 e estimou que ele deve alcançar quase US$ 27 bilhões em 2026.

Regionalmente, há um destaque absoluto para a América do Norte, cujo mercado de cannabis medicinal representava em 2018 quase a totalidade dos US$ 6 bilhões. Ademais, estima-se que, com uma taxa de crescimento estável, ele chegue a quase US$ 25 bilhões em 2026. O relatório prevê um impulsionamento por conta do número crescente de financiamento privado e público para pesquisa médica em torno da cannabis.

Depois da América do Norte, a Europa é a segunda maior região no mundo que cultiva cannabis com fins médicos. A Fortune Business Insights destacou o crescimento das legalizações, o aumento do investimento pelas empresas e o foco dos grandes players no mercado europeu.

A América Latina está atrasada em relação a essas regiões, mas os cenários de regulamentação nos países vêm apresentando mudanças. O Market Data Forecast espera que o tamanho do mercado de cannabis medicinal na América Latina alcance mais de US$ 3 bilhões até 2027. Além disso, apesar dos obstáculos no contexto brasileiro, o mercado se mostra promissor.

A cannabis medicinal no mercado brasileiro

De acordo com o mesmo relatório do Market Data Forecast, na América Latina, o Brasil detém as maiores participações dentro do mercado de cannabis medicinal, o qual é impulsionado, principalmente, pelo aumento da incidência de câncer. Alguns estudos já indicaram o seu potencial no tratamento de dores crônicas para diferentes quadros clínicos, como no caso de pacientes com câncer.

Sobre as solicitações para importação de canabidiol, a Anvisa indicou que elas foram de 902 em 2015 para 6.267 no terceiro trimestre de 2019. Ainda, o Boletim Informativo de Monitoramento Pós-Mercado da Anvisa trouxe que de 2021 para 2022 o número de pedidos deferidos praticamente dobrou, aumentando de 26.861 para 57.974. A Kaya Mind, empresa de inteligência de mercado voltada para esse segmento, levantou dados relevantes em 2021. A empresa estimou que as condições médicas que podem ser tratadas ou aliviadas com os produtos à base de cannabis medicinal acometem até 18,6 milhões de brasileiros. Além disso, o relatório indicou um potencial de movimentação de R$ 9,5 bilhões com o mercado da cannabis medicinal.

Outro estudo, feito pela New Frontier Data em parceria com a The Green Hub em 2018, também levantou um dado relevante quanto ao potencial desse mercado: cerca de 3,4 milhões de brasileiros poderiam usufruir do uso medicinal da cannabis para o tratamento de dores crônicas. Isso significaria uma receita anual de R$ 4,6 bilhões com uma regulamentação mais ampla no Brasil. Por fim, uma avaliação de 2021 da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann) indicou um potencial de geração de mais de 300 mil empregos em dez anos.