A saúde cardiovascular das pessoas não vai bem há algumas décadas e isso não é novidade. Esse debate ganhou mais força no início da década de 2000, conforme os especialistas confirmavam os principais fatores de risco das doenças do coração. Mesmo assim, os esforços até agora não foram suficientes: os números não apenas não melhoraram nos últimos anos, como pioraram e o futuro parece seguir a mesma linha.
De acordo com o relatório “Global Burden of Diseases” (GBD), de 1990 até 2022, os óbitos devido a doenças do coração aumentaram 39,4% em todo o mundo. Ou seja, estamos falando de um cenário que afetava 12,4 milhões de pessoas e agora já impacta mais de 19 milhões.
Enquanto isso, no Brasil, o cardiômetro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) estima que até o final do ano pelo menos 400 mil brasileiros tenham ido a óbito em decorrência desse cenário. Para melhor visualização, imagine: são pelo menos 1100 mortes por dia, 46 pessoas por hora, 1 a cada 90 segundos.
Outro indicador da piora do cenário está no fato de que, atualmente, as doenças cardiovasculares já causam mais óbitos do que todos os tipos de cânceres juntos. Pensando em uma comparação, pode-se dizer que a mortalidade por doenças cardiovasculares:
- Ultrapassa a mortalidade dos cânceres;
- é 2,3x maior do que causas externas (como acidentes e casos de violência);
- 3x maior do que as doenças respiratórias;
- e 6,5x maior do que todas as infecções (incluindo a AIDS).
Além disso, o artigo de 2023 da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), indica que os custos diretos e indiretos das doenças cardiovasculares estão gerando custos de 10 bilhões de dólares para o sistema de saúde suplementar. Para chegar nesta estimativa, foram considerados dados globais, além do fato de que as instituições públicas atendem mais de 70% da população brasileira e que no sistema privado a combinação de custos diretos e indiretos podem ser até 5 vezes maior do que o custo direto no SUS.
“Avaliando o Brasil e o restante do mundo, as doenças cardiovasculares são as que mais matam. Nisso, temos dois atores principais dentro desse grupo de doenças cardiovasculares, o infarto e o AVC”, inicia Diandro Mota, cardiologista integrante da SOCESP (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo) e diretor médico da startup Neomed. “Já não consideramos esse cenário como uma epidemia, é uma questão endêmica. São dados que não vêm de hoje, não vêm de ontem, já são de longa data. O que a gente precisa é juntar esforços para que essa realidade mude”, diz o cardiologista da SOCESP.
Mas afinal, como chegamos em números tão altos?
Fatores de risco
É fato que, algumas condições podem ser herdadas geneticamente. No entanto, quando se trata do coração, existe uma variedade significativa de fatores de risco que podem influenciar até mais do que a herança dos genes.
Para entender as doenças cardiovasculares, primeiro precisamos dividi-las em dois grupos: o primeiro são de condições que atingem o coração em si, enquanto o outro afeta principalmente os vasos sanguíneos – isto é, a circulação.
Em seguida, devemos considerar que são fatores não-controláveis: idade, etnia, gênero e histórico familiar. Paralelamente, existem pelo menos 8 fatores controláveis, que são também os principais elementos de influência quando se trata de saúde cardiovascular.
De acordo com Diandro Mota, as respostas, em geral, já estão aí. “A literatura científica já detectou que 90% de todos os casos de primeiro infarto estão associados a fatores de saúde controláveis”, afirma o especialista. Portanto, é possível gerenciar:
- níveis de colesterol;
- tabagismo;
- hipertensão;
- sobrepeso na região central do abdômen e obesidade;
- qualidade da alimentação;
- consumo de álcool;
- diabetes;
- fatores psicossociais (estresse, ansiedade e depressão).
Ou seja, estamos falando principalmente de uma população perpetuando um estilo de vida pouco saudável.
Desafios dentro do consultório
Dentro do consultório, existem dois desafios principais para o médico: ajudar o paciente a estabelecer mudanças de hábito e aderir corretamente o tratamento medicamentoso.
Estimulando a mudança de hábitos
Apesar da maioria dos fatores serem controláveis, “mudança de hábito não é algo fácil de fazer”, diz o cardiologista. Ele continua, explicando que a assistência em cardiologia se beneficiaria com a aplicação de estratégias de ciência comportamental, de forma que o paciente realmente consiga transformar seu tratamento em hábitos.
“Temos o costume de dizer que todo comportamento não-saudável tem uma história. Isso porque existe um contexto onde começou e têm uma finalidade na vida da pessoa”, explica Mota. Assim, o uso de novas ferramentas e estratégias para entender junto do paciente como o quadro clínico chegou àquele ponto pode otimizar as intervenções no consultório.
Essa dificuldade se deve principalmente porque o estilo de vida de cada indivíduo é composto por vários pilares, o que faz com que todo esse processo acabe assemelhando-se com “a montagem de um quebra-cabeça”, como diz o cardiologista integrante da SOCESP.
“Todo cardiologista que trabalha com prevenção deve: pegar dados do paciente, da sua história pessoal, dados da história familiar do paciente, informações a partir do exame físico detalhado e juntar com outras informações de exames complementares, que são fundamentais para montar esse quebra-cabeça”, detalha Diandro.
Com um processo tão complexo e rico em detalhes, têm sido cada vez mais comum o uso o acompanhamento por dispositivos vestíveis e uso de algoritmos preditivos. A combinação dessas tecnologias ajuda a estipular os riscos que o paciente corre nos próximos anos, respondendo perguntas como: quando um infarto vai ocorrer? Qual o risco de ter um derrame? Qual o risco de infarto?
A adesão medicamentosa
Ainda dentro do consultório, a adesão correta dos medicamentos também é um desafio. “Quando falamos de adesão, nos referimos ao percentual de pacientes que seguem corretamente as prescrições médicas, utilizando os medicamentos por 80% do tempo recomendado”, explica Diandro Mota.
Por exemplo, um paciente que sofre um infarto e recebe alta hospitalar, costuma sair do hospital com a orientação de tratar-se com cinco medicamentos. “No entanto, quando reavaliamos esse paciente um ano depois, constatamos que mais de 50% deles não estão utilizando nem dois dos medicamentos recomendados. Isso revela uma adesão muito baixa, o que é um problema sério, pois sem a prevenção secundária, o risco de um segundo infarto ou AVC é muito alto”, afirma o especialista da SOCESP.
Considerando esses desafios, as novidades em cardiologia são bem-vindas. Vamos ver abaixo.
As novidades da cardiologia
Medicamentos inovadores
No que se refere aos tratamentos medicamentosos, as inovações para doenças metabólicas também ajudam o setor de cardiologia. Em 2024, vemos a chegada de novas substâncias, que lembram o funcionamento do Ozempic, só que com foco na redução do colesterol em vez de diabetes.
“Um dos principais avanços é a classe de medicamentos injetáveis conhecidos como inibidores de PCSK9. Esses medicamentos são administrados por injeção subcutânea e têm se mostrado altamente eficazes na redução agressiva do colesterol LDL, o colesterol 'ruim'”, explica Roberto Cury. Na prática, o tratamento injetável deve representar um grande avanço para a adesão e controle dos tratamentos medicamentosos.
Por outro lado, o custo ainda é alto. O que significa que uma parcela significativa da população pode não acessar esses medicamentos. “É crucial que haja maior concorrência no mercado para que esses medicamentos se tornem mais acessíveis e possam beneficiar um número maior de pessoas”, completa o cardiologista.
Demais tecnologias para cardiologia
"Se olharmos os últimos 20 anos, avançamos bastante na detecção precoce de doenças cardiovasculares”, afirma Roberto Cury, cardiologista, CEO da Virtual Core e diretor médico e de experiência do paciente da DASA.
Na visão de Cury, os destaques vão principalmente para a tomografia de tórax para avaliação do score de cálcio. “Trata-se de uma tomografia sem contraste que mede a quantidade de cálcio presente nas artérias coronárias, permitindo a criação de um score de risco cardiovascular com base na idade, raça e sexo de cada paciente. Quanto maior o nível de cálcio, maior a chance de o indivíduo ter um evento cardiovascular, como um infarto ou insuficiência cardíaca", explica o CEO da Virtual Core.
O cardiologista reitera ainda que, esse tipo de exame complementa a avaliação tradicional de colesterol. Por exemplo, “se o score de cálcio estiver acima de 400, isso indica que o cardiologista precisa ser mais agressivo no tratamento e utilizar medicamentos como as estatinas (rosuvastatina ou sinvastatina) para reduzir os níveis de colesterol LDL a menos de 50 ou 70, dependendo do risco do paciente. Essa personalização no tratamento é um exemplo de medicina de precisão", explica Roberto Cury.
Além disso, ele destaca a evolução na avaliação de pacientes com sintomas de dor no peito. "No passado, utilizávamos cintilografia, teste ergométrico e, em casos mais graves, o cateterismo. Hoje, com a angiotomografia de coronárias, conseguimos avaliar a composição das placas nas artérias, como as placas de gordura, e identificar se são estáveis ou instáveis. Isso nos permite intervir precocemente, evitando complicações. Se a obstrução for maior que 70%, por exemplo, indicamos o cateterismo e, em alguns casos, a angioplastia ou até cirurgia cardíaca", completa.
Novas diretrizes
No final de agosto deste ano, o congresso anual da Sociedade Europeia de Cardiologia (European Society of Cardiology, ESC) apresentou uma série de novas diretrizes médicas, trazendo atualizações importantes sobre fibrilação atrial, síndromes coronarianas crônicas (SCC), doença arterial periférica (DAP) e doenças da aorta e hipertensão.
A seguir, destacamos os principais pontos das novas diretrizes. Para informações mais detalhadas, recomendamos o e-book desenvolvido por especialistas da plataforma de educação continuada MedHealth, em parceria com a CardioRReview.
- Hipertensão
Uma das mudanças mais notáveis foi a revisão do conceito de "pressão arterial ideal", que tradicionalmente era considerada a famosa "12 por 8" (120x80 mmHg). Agora, essa medida foi reclassificada e já não é mais vista como um indicador de pressão ideal. Nas novas diretrizes da Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), surgiu uma nova categoria chamada "pressão arterial elevada", que abrange pessoas com valores entre 120-139x70-89 mmHg. Isso significa que a pressão "12 por 8", anteriormente considerada normal, agora está em uma subcategoria que, embora não configure hipertensão, também não é mais vista como ideal.
Outra mudança significativa está relacionada aos critérios diagnósticos em consultório. Para evitar erros causados pela chamada "hipertensão do jaleco branco" — quando a pressão arterial do paciente aumenta apenas pela ansiedade da consulta médica —, agora recomenda-se o uso de medições por meio do MAPA (Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial). Além disso, medidas superiores a 139x89 mmHg já são indicativas de hipertensão, e o tratamento pode ser iniciado já na primeira consulta.
- Fibrilação Atrial
A principal novidade sobre fibrilação atrial foi a introdução do protocolo AF-CARE, que traz uma abordagem mais voltada para o cuidado integral do paciente. Esse protocolo inclui:
- C (Comorbidities): Avaliação de comorbidades associadas;
- A (Anticoagulation): Histórico de AVC ou embolia;
- R (Reduce Symptoms): Redução dos sintomas;
- E (Evaluate): Avaliação e reavaliação contínua do paciente.
O foco é um cuidado mais centrado no paciente, considerando seus fatores de risco e estado geral, e não apenas o controle da arritmia.
- Síndromes Coronarianas Crônicas
No campo das síndromes coronarianas crônicas, as mudanças foram significativas. A doença não é mais considerada uma condição exclusivamente fisiológica, mas sim uma alteração cardiovascular em nível micro e macroscópico. Além disso, passou a ser recomendada a prática de exercícios aeróbicos regulares, com duração entre 120 e 140 minutos semanais, como parte fundamental do tratamento. Outra novidade foi a inclusão de novos medicamentos no protocolo, como os inibidores de dapagliflozina (ISGLT-2) e semaglutida (AGLP-1), que têm mostrado benefícios no manejo de pacientes com doenças cardiovasculares.
- Doença Arterial Periférica e Doenças da Aorta
Nas novas diretrizes para doença arterial periférica e doenças da aorta, houve uma mudança no enfoque do tratamento. Agora, é enfatizada a necessidade de gerenciar essas condições de maneira abrangente, considerando toda a circulação arterial do paciente. Ou seja, se há um problema em uma artéria, o tratamento precisa levar em conta todo o sistema circulatório, em vez de focar apenas no local específico da obstrução.
Essas atualizações refletem um avanço nas abordagens de diagnóstico e tratamento, com ênfase na medicina personalizada e no cuidado integral dos pacientes.
As tecnologias de saúde no Brasil
"Na Europa e nos Estados Unidos, a adoção tecnológica para diagnóstico precoce e realização de procedimentos avançados é bastante disseminada. No Brasil, os principais centros de saúde estão bastante alinhados com os melhores hospitais do mundo no que diz respeito à saúde suplementar. No entanto, quando falamos de política pública no SUS, temos visto avanços significativos, mas ainda em um nível inferior ao que observamos na saúde suplementar, e isso se deve, em grande parte, às questões de investimento”, explica Roberto.
Junto a isso, há ainda a questão da distribuição desigual dessas tecnologias ao longo dos estados e regiões do país. Quanto mais distante dos centros urbanos, mais difícil se torna o acesso às tecnologias de ponta.
Portanto, "o Brasil conta com boas tecnologias comparáveis às melhores do mundo, mas o grande desafio é garantir uma distribuição mais equitativa dessas inovações em todo o país", conclui Roberto.
O mercado e o futuro da cardiologia
Na visão do CEO da Virtual Core, o mercado de cardiologia estará sempre direcionado para a melhora de dispositivos médicos e procedimentos. Porém, atualmente, o foco é otimizar tecnologias que permitam diagnóstico e tratamento precoce, “o que significa que o número de pessoas infartando ou enfrentando complicações cardiológicas graves tende a diminuir", diz o especialista.
Isso implica que, a longo prazo, a necessidade de realizar procedimentos invasivos como cateterismo, angioplastia ou cirurgias cardíacas deve deixar de ser algo tão frequente. "Se olharmos o volume de cirurgias cardíacas há 30 anos, era muito maior do que hoje. Isso se deve ao avanço de procedimentos menos invasivos, como o cateterismo e a angioplastia com stents, que tomaram o lugar de muitas cirurgias cardíacas", aponta Cury.
Para o cardiologista, "esse é o futuro da cardiologia", reforça. "Com o envelhecimento da população, especialmente olhando para 2030 ou 2050, veremos uma inversão da pirâmide etária em alguns países. Isso deve aumentar a prevalência de arritmias e doenças cardiovasculares, especialmente a fibrilação atrial”.
Consequentemente, o cardiologista aposta no aumento de procedimentos relacionados a essas condições. "Embora vejamos essa evolução para métodos menos invasivos, ainda haverá um equilíbrio. O diagnóstico precoce será crucial para diminuir comorbidades, e os médicos que se dedicarem a isso terão um papel fundamental no cuidado preventivo de seus pacientes", concluiu.