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Colômbia: uma análise sobre o sistema e a reforma de saúde

Entrevista com o Jorge Armando Rodríguez, economista, professor de economia da Universidade Nacional da Colômbia e ex-ministro do Ministério das Finanças e Crédito Público da Colômbia

Letícia Maia
12 min

Desde que Gustavo Petro assumiu a presidência da Colômbia, em agosto de 2022, a reforma do sistema de saúde do país tornou-se uma pauta frequente do noticiário colombiano. Sendo uma das principais promessas do governo de Petro, os esforços para que a reforma aconteça são frequentes. No entanto, a aprovação de algumas medidas sofrem com a falta de consenso entre governo e população. 

Para entender o que acontece na Colômbia, o economista e professor da Universidade Nacional da Colômbia, Jorge Armando Rodríguez, nos sugere que antes de tudo olhemos para o que diz a constituição colombiana sobre o acesso à saúde. 

Prática x Direito

A versão de 1991 da Constituição Colombiana prevê – no artigo 49 do Capítulo IV do Título I aos Direitos Fundamentais – que a saúde é um direito fundamental de todo cidadão. No entanto, no dia a dia a realidade é outra. 

Quanto mais afastado estiver das grandes cidades, mais difícil é obter acesso aos serviços de saúde, mesmo os mais básicos. E esse cenário se dá porque, “a forma como o sistema de saúde colombiano foi desenhado diverge do que prevê a constituição”, explica o economista Jorge Armando. 

Consequentemente, assim como no Brasil, o país passou a ver um aumento expressivo nos processos judiciais referentes aos direitos de saúde, conforme explica este artigo. Porém, a judicialização é apenas um sintoma de algo muito maior: a crescente consciência que muitos cidadãos estão tendo de que não conseguem usufruir de um direito que lhes é garantido em constituição. 

O dia a dia na saúde colombiana

Rodríguez explica que os serviços de saúde estão concentrados na região central da Colômbia. Isso significa que quem está nas grandes cidades possui uma grande oferta de clínicas e hospitais. Enquanto isso, quanto mais distante do centro das grandes cidades, mais difícil é encontrar serviços de saúde – e quando eles existem, a infraestrutura costuma não estar adequada, as filas são longas e o atendimento como um todo não é dos melhores. 

A forma como os colombianos acessam os serviços de saúde é um dos fatores que mais reforçam a disparidade social. O economista explica que a maior parte dos serviços médicos das grandes cidades são ofertados por empresas privadas. Nesse caso, estamos falando de serviços oferecidos mediante convênio médico ou atendimento particular. 

Como todo convênio médico, é possível encontrar planos com preços relativamente acessíveis. Porém, na Colômbia é comum que os planos mais baratos tenham limitações consideráveis, como a falta de cobertura para hospitalização, procedimentos complexos e medicamentos considerados de alto custo. 

Embutida nessa questão, há a realidade dos trabalhadores em empregos informais. Além dos salários frequentemente baixos, a informalidade também impede que essa parcela da população usufrua dos serviços do Regime Contributivo (RC). Conforme explicado no artigo anterior sobre a Colômbia, o Regime Contributivo sustenta-se através de taxas pagas por empregadores e trabalhadores, o que permite oferecer serviços com maior qualidade e completude. 

Entretanto, o país possui grande parcela da população em trabalhos irregulares. Durante a pandemia da Covid-19, dados do DANE (Departamento Administrativo Nacional de Estatística) indicavam a Colômbia como o país recordista em empregos informais, com 61,3% da população trabalhando em condições irregulares – para visualizar um pouco dessa realidade, sugerimos a leitura deste artigo.

Portanto, usufruir dos serviços de saúde de melhor qualidade – oferecidos pelo Regime Contributivo – , não é uma possibilidade para grande parcela da sociedade. Toda essa dinâmica tem relação direta com a forma como o sistema foi desenhado, trazendo-nos então ao momento onde realizar a reforma de saúde é considerada uma medida urgente. 

Porém, apesar de urgente, o debate sobre a reforma é acalorado e traz a polêmica proposta de eliminação total da participação das empresas privadas. Para entender melhor a questão, leia abaixo trechos da entrevista com o professor e economista Jorge Armando Rodríguez.

O que diz o economista Jorge Armando Rodríguez

Além de ser economista e professor de Ciências Econômicas na Universidade Nacional da Colômbia – uma das principais e mais antigas instituições de ensino –, Jorge Armando Rodríguez também foi ministro do Ministério das Finanças e Crédito Público da Colômbia durante o mandato de Ernesto Samper (1994-1998; Partido Liberal Colombiano). 

  1. De forma resumida, como podemos explicar o acesso à saúde na Colômbia atualmente?

Jorge Armando: Para entender o sistema de saúde colombiano é necessário entender um pouco sobre a parte legal. Na constituição da Colômbia o acesso à saúde é considerado um direito fundamental e isso tem diversas implicações. 

A primeira é que gera a expectativa de todos serem atendidos pelo sistema de saúde, tendo acesso pelo menos aos serviços básicos. A segunda é que em 1993, a lei 100 estabelecia que o sistema iria oferecer recursos para a saúde conforme a demanda. Portanto, temos a aspiração de um atendimento de saúde universal, ao mesmo tempo que nosso sistema oferece recursos baseado em demanda e não em oferta. O que isso significa? Basicamente que a ideia era separar recursos conforme as necessidades da população em vez de fornecer hospitais e clínicas de forma completa.

Temos ainda um terceiro elemento, que é: a forma como os seguros de saúde foram implementados (as EPS) deixou as empresas privadas responsáveis pelo financiamento de hospitais e clínicas e também pelos acordos com outras seguradoras e demais serviços que fossem oferecidos para a população.

Portanto, a aspiração pelo acesso universal à saúde, o financiamento do sistema baseado em demanda e a posição dos seguros de saúde como intermediários levou ao quarto elemento: a criação de dois sistemas para oferecer saúde para a população. Ou seja, a população colombiana possui duas formas de acessar serviços de saúde. O primeiro caminho é para aqueles que podem pagar, então fazem parte do Regime Contributivo (RC). Já o outro é destinado para aqueles que não conseguem contribuir, então usam do Regime Subsidiado (RS). 

Desde sua origem a qualidade dos serviços não é a mesma nos dois sistemas. A qualidade e a quantidade são muito melhores no regime contributivo do que no subsidiado, que foi feito especialmente para a parte pobre da população. Então o sistema tem esses paralelos, uma contradição entre o que se aspira e o que a constituição realmente oferece. Isso levou o país a uma crise política, porque a população percebeu que se você aspira pelo acesso à saúde universal, mas tem dois sistemas para atender classes sociais diferentes, então o direito está sendo violado. As pessoas de classe média e baixa irritaram-se com o sistema, o que incitou a crise política, que começou mesmo em 2015. 

  1. Vejo que essa é uma discussão em alta e que todos os dias saem muitos desdobramentos sobre isso. Você pode nos explicar se o que está acontecendo está alinhado com o que as pessoas querem?

Jorge Armando: Existem muitos pontos, mas vamos aos principais: o primeiro é que, de acordo com o governo – que é de esquerda e muito crítico do sistema atual – e com as pessoas que moram em regiões mais pobres, a constituição coloca a saúde como um direito, mas na prática não é. E então questionam a real qualidade do sistema. 

O segundo elemento é que eles culpam as empresas privadas por essa situação. Eles acreditam que a saúde universal não é alcançada porque o sistema de saúde privado está mais preocupado com os negócios do que em oferecer serviços para todos. Eles acreditam que a raiz do problema é que os seguros de saúde são feitos para lucrar, então eles apontam diversos casos de corrupção e desvios de recursos públicos para instituições privadas para sustentar a afirmação de que o sistema não está funcionando. 

Ou seja, basicamente, a forma como o sistema de saúde foi desenhado acabou dando poder demais para as empresas privadas e eles acreditam que, como a quantidade de recursos que o governo aloca para as entidades de saúde é alta – cerca de 6% do PIB –, muito mais poderia ser feito pela saúde da população. Por isso circula no governo a proposta de eliminar as iniciativas privadas de saúde.

  1. E qual sua opinião em relação a tudo isso?

Jorge Armando: A regulamentação é muito permissiva, não está elaborada bem o suficiente para evitar desvios de recursos públicos. Por isso, em vez de eliminar o regulamento das EPS, é possível modificá-lo, melhorá-lo e alterar os incentivos de acordo com os desafios que enfrentam em cada região, reorientando-os para os cuidados de saúde e não para atividades orientadas para o lucro.

  1. As pessoas caminham para um consenso no que se refere às propostas da reforma de saúde?

Jorge Armando: Isto não é fácil de responder, porque algumas pessoas concordam, em especial as que estão em regiões mais pobres do país. Já as pessoas das grandes cidades quando receberam a notícia de que a proposta principal tem o objetivo de acabar com os serviços privados, muitas delas ficaram zangadas, enquanto outras apoiaram a legislação. Ou seja, há pessoas favoráveis a ambas. Em zonas menos pobres do país, as pessoas tendem a reconhecer que, apesar das falhas do sistema, foram introduzidas melhorias. Mesmo assim, existe essa divergência política, a população está dividida em ambos os lados. 

  1. Por fim, se você tivesse esse poder, o que faria?

Jorge Armando:  O que temos hoje é a proposta do governo, de criar um sistema de saúde controlado apenas pelo governo, tirando toda a participação das empresas privadas. Ao meu ver, isso é um tanto extremo, é um erro eliminar as empresas dessa forma.

Acredito que precisamos ter limites no orçamento, cerca de 6% ou 7% do PIB. Depois, mudaria a base da regulamentação das empresas de saúde, de forma a garantir que a quantidade de seguros não é desproporcional e que não há como tirar vantagem dos repasses públicos.

Outra grande questão também é que muitas cidades carecem de estrutura básica, nem mesmo há acesso à água. Ou seja, não adianta apenas culpar as instituições privadas por tudo, precisamos melhorar a infraestrutura e resolver demais questões regionais, para criar estratégias específicas que incentivem empresas e profissionais a atender nessas regiões.

O sistema de saúde colombiano em números

Ainda para ajudar na visualização da situação atual do sistema de saúde colombiano, vamos a alguns números.

Custos médicos

Conforme dito anteriormente, “cerca de 6% do PIB colombiano é gasto com o setor da saúde”, explica Jorge Armando Rodríguez. O número não é considerado nem baixo e nem alto demais. Mesmo assim, as questões financeiras do setor de saúde colombiano devem passar por momentos delicados nos próximos meses. 

Só no que se refere aos custos médicos, deve haver um aumento de 12,4% neste ano, conforme aponta uma análise da empresa de consultoria AON. De acordo com a projeção, a elevação do custo deve ser vista em toda a América Latina e Caribe, devido à inflação e às novas tecnologias médicas – mas alcançando o patamar de 11,7%

No entanto, a estimativa para Colômbia apresenta um percentual um pouco maior porque o país sofre ainda com a influência dos pagamentos atrasados às EPS (Empresas Promotoras de Saúde), captações insuficientes das Unidades de Pagamento de Captação (UPC) e as possíveis mudanças que a reforma de saúde deve causar ainda este ano.

Sinistralidade e Lacunas

De acordo com o relatório “Atualidades e Perspectivas do Setor da Saúde”, feito pela Sectorial, entre custos e rendimentos, os seguros de saúde colombianos apresentaram uma taxa de 104,9% de sinistralidade em 2023. Quando a sinistralidade foi associada às despesas, o percentual subiu para 109,5% em todo o sistema. 

Os dados sobre sinistralidade são apenas elementos de um quadro maior: a lacuna que existe na saúde financeira do sistema de saúde. Isso porque, ainda segundo o relatório, detecta-se um desequilíbrio significativo ao analisar os recursos das entidades Não-UPCs. 

Em 2022, as entidades Não-UPCs receberam 1,9 bilhão de dólares em repasses, mas tiveram custos excedentes mesmo assim. Logo, em 2023, as EPS viram um déficit de 1,5 bilhão de pesos, já que os gastos foram superiores aos valores repassados pelas ADRES (Administrador dos Recursos do Sistema Geral de Seguridade Social em Saúde). 

De modo geral, as análises indicam que a lacuna no financiamento atingiu 15,9 bilhões de dólares — causada pela falta de pagamento de dívidas, bem como dos repasses insuficientes para cobrir custos e despesas de todo o sistema ––, mas caiu para 13,9 mil milhões de dólares em 2024, graças ao pagamento dos Orçamentos Máximos feitos em períodos anteriores. 

A reforma e o futuro do sistema

No que se refere à reforma da saúde, o Ministério da Fazenda apresentou no congresso um relatório de quanto a reforma deve custar para o país ao longo dos próximos 10 anos. Segundo as projeções, estima-se que iniciar a reforma neste ano levaria os gastos ao patamar de 91,3 bilhões de pesos colombianos – e pode chegar a 92,2 bilhões de pesos. Durante os primeiros anos, os gastos devem ser altos e gerar um déficit de até 3,2 bilhões de dólares, mas o cenário deve ser revertido a partir de 2036.

Em contrapartida, a análise da Sectorial indica que o sistema de saúde deve precisar de 99,6 mil milhões de dólares para funcionar de forma adequada em 2024. Para atingir tal valor, seria necessário aumentar em 21% os recursos da Unidade de Pagamento por Captação (UPC). 

Ao persistir no ritmo atual, o déficit deve ser de 9,5 bilhões de dólares ainda neste ano. Junto a isso, a falta de correção dos demais déficits históricos pode fazer com que esse valor chegue a 23,4 bilhões de dólares – valor equivalente a 1,5% do PIB projetado para este ano.

O sistema de saúde colombiano passa por um momento de desfinanciamento. Na prática, isso significa que as EPS dependem de suas reservas líquidas (7,6 mil milhões de dólares) e podem colapsar ainda em setembro deste ano.

A influência política no setor de saúde

Como os trechos da entrevista com Jorge Armando Rodríguez mostraram, a Lei 100 é uma das bases do funcionamento do mercado de saúde colombiano. Estabelecida em 1993, durante o governo do economista César Gaviria (1990-1994; Partido Liberal Colombiano), a lei estabeleceu a reforma do sistema de saúde na época e regulamentou o mercado de assistência médica dando às seguradoras de saúde um papel de destaque no sistema. 

Na época, o governo de Gaviria era visto como de centro-esquerda e isso não foi um impeditivo para que o mercado fosse fortalecido. No entanto, o governo de Gustavo Petro (2022-2026; Colômbia Humana) por vezes apresenta tendências um pouco mais extremas, como a proposta de eliminação total da participação das empresas privadas de saúde como intermediárias. Apesar da necessidade de uma nova reforma já ser um consenso, o mesmo ainda não acontece com as medidas propostas para que ela se consolide.