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Como a Sanii vem olhando para a emergência da saúde mental dos idosos?

Na esfera da saúde na silver economy, uma demanda latente está relacionada à saúde mental e cognitiva da população idosa, que se vê muitas vezes negligenciada e isolada da sociedade

Paola Costa
9 minutos

Ainda que haja uma escassez de soluções voltadas para os idosos em inúmeras áreas, o processo de envelhecimento da população não é nenhuma novidade. Trata-se de um fenômeno global e, no âmbito brasileiro, o Ministério da Saúde já indicou que em 2030 o número de idosos vai superar o de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos em cerca de 2,28 milhões. Essa transformação demográfica traz implicações em toda a sociedade com novos padrões de comportamento e consumo, desafios em torno da reavaliação de políticas públicas, maior pressão sobre o sistema de saúde, mudanças na estrutura social, impacto econômico, entre outros pontos.

Com esses desafios do envelhecimento também surgem oportunidades de mercado voltadas para endereçar essas demandas, constituindo a chamada silver economy (ou economia prateada), previamente abordada na segunda edição da Green Rock Insights. Na esfera da saúde, uma demanda latente está relacionada à saúde mental e cognitiva da população idosa, que se vê muitas vezes negligenciada e isolada da sociedade. Ressalta-se que, ainda que hoje a população viva mais, isso não necessariamente se reflete no âmbito da qualidade de vida, tanto no aspecto físico quanto no emocional, que se entrecruzam.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 14% da população com 60 anos ou mais vive com algum transtorno mental, sendo que as condições de saúde mental mais comuns nessa população são depressão e ansiedade. Além disso, globalmente, em torno de um quarto dos suicídios são cometidos por idosos. Quanto aos fatores de risco, a OMS salienta que em idades mais avançadas, grande parte da saúde mental é moldada pelos impactos cumulativos das experiências de vida e fatores de estresse ligados ao envelhecimento. Ainda, a solidão e o isolamento social são apontados como fatores de risco centrais para problemas de saúde mental na velhice.

No Brasil isso não é muito diferente. À exemplo desse cenário, uma pesquisa do IBGE divulgada pelo Jornal da USP em 2021 indicou que os idosos são os mais afetados pela depressão, atingindo em torno de 13% da população com idade entre 60 e 64 anos. Outro ponto característico da população idosa atualmente é a tendência ao isolamento, que tem sido associada a consequências na saúde cognitiva. Um estudo publicado em julho de 2023 na revista Neurology indicou que pode haver uma relação entre o isolamento social dos idosos e uma perda do volume cerebral, sendo que muitas vezes essa diminuição é seguida por um quadro de demência.

A influência da solidão na saúde mental dos idosos

Em exclusiva para a Green Rock, Bruno Camargo, psicólogo clínico com formação em Terapia Cognitiva e Comportamental e especialista em Gerontologia, pontua que a solidão nos idosos é um problema que vai muito além do isolamento social, impactando na saúde mental e física desse idoso. “À medida que nós vamos envelhecendo, nossas redes de apoio vão se estreitando, tornando a solidão um desafio muito presente para lidarmos tanto como sociedade quanto como família e individualmente. O envelhecimento é muito permeado com perdas e pode fazer o idoso mergulhar em um ciclo muito negativo com a ausência de conexões sociais significativas”, ressalta Bruno.

Do ponto de vista da saúde mental, o psicólogo explica que o isolamento pode levar a sentimentos de vazio, desesperança, desânimo e pode ser um terreno fértil para o desenvolvimento de depressão ou transtornos de ansiedade, por exemplo. Além disso, como indicado no estudo mencionado, Bruno aponta que há uma relação entre a solidão e o declínio cognitivo nos idosos, antecipando o surgimento de doenças demenciais, uma vez que a falta de estímulos sociais afeta negativamente o cérebro. Ainda, ele também salienta questões de autoestima e autoconfiança dos idosos, que são afetadas pelo isolamento. “Se o idoso está muito isolado, pode passar a se sentir inútil, o que vai minando sua autoimagem em relação a sua contribuição para a sociedade e a sensação de pertencimento”,  conclui.

Bruno Camargo também destaca que a solidão vai além da questão de saúde mental, afetando também a saúde física dos idosos: “Já vimos estudos que demonstram que idosos que são mais solitários têm maior tendência a ter problemas de saúde físicos, como doenças cardiovasculares, comprometimento no sistema imunológico, estresse crônico, etc. Essas questões podem se equiparar a questões de saúde de uma pessoa fumante ou de uma pessoa obesa”. Outros aspectos que também são influenciados negativamente pela solidão nos idosos são o sono, podendo haver quadros de insônia e um prejuízo na capacidade de um descanso regenerador, além de um desequilíbrio na alimentação e um possível abuso de substâncias, como o álcool.

Diante desse cenário do isolamento, o psicólogo ressalta que são necessários programas de apoio que promovam o envelhecimento ativo, incentivem a participação dos idosos em atividades sociais e a manutenção de conexões com amigos e familiares. “É fundamental reconhecermos que a solidão no envelhecimento não é uma fraqueza, mas sim um problema real, crônico, que tem se tornado muito recorrente na nossa sociedade e exige bastante atenção e compreensão”, conclui.

A questão do estigma e o acesso aos serviços de saúde mental

No entanto, a busca por ajuda no âmbito da saúde mental dos idosos é permeada por vários desafios, sendo o estigma um deles. Bruno destaca que “o estigma está, muitas vezes, enraizado na desinformação e na falta de compreensão sobre as questões de saúde mental”, de forma que muitos idosos acreditam que a tristeza e o esquecimento, por exemplo, são comuns no processo de envelhecimento. Vale ressaltar que esse tipo de visão estigmatizada é uma questão global, de maneira que os órgãos de saúde mundo afora têm publicações em torno desse tema, como o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), por exemplo, que tem um pequeno artigo informando e explicando que a depressão não é natural do processo de envelhecimento.

Além do estigma, que desencadeia sentimentos de vergonha e medo do julgamento familiar por parte do idoso, outro desafio central está na dificuldade de acesso, de acordo com o psicólogo. “Não podemos deixar de lado o acesso limitado aos serviços de saúde mental. Muitos idosos vivem em áreas mais periféricas, têm mobilidade reduzida ou dificuldade de deslocamento, então o acesso a esse tipo de cuidado é dificultado”.

Nessa questão do acesso, Bruno também chama atenção para o aspecto financeiro e como o acompanhamento da saúde mental ainda é visto como uma questão subjacente: “Infelizmente hoje as pessoas que têm acesso ao consultório particular são pessoas que inevitavelmente têm mais recursos financeiros. A maioria dos idosos que eu atendo hoje têm muitos gastos com convênio médico, outras questões de saúde e medicação. Eu percebo que a psicoterapia não é uma prioridade, mas sim uma necessidade que entra depois disso tudo. Então imagino que se o recurso fosse mais reduzido, provavelmente eles descartariam a psicoterapia”.

As especificidades do quadro de depressão nos idosos

Dentro dos quadros de depressão em idosos, que vêm se tornando cada vez mais alarmantes, um elemento chave que não pode ser descartado é que esse transtorno mental pode se apresentar de forma distinta na população idosa por conta de fatores específicos ligados ao envelhecimento. Em resumo, o psicólogo indica que a depressão se manifesta nos idosos mais claramente nos sintomas físicos do que nos emocionais.

“Vamos ver idosos com muita fadiga, dores crônicas, problemas de alimentação, ganho ou perda de peso, problemas de saúde, alterações no apetite. Em quadros de depressão em adolescentes e adultos, geralmente há um predomínio de sintomas mais emocionais, como uma tristeza mais intensa. O idoso, à via de regra, primeiro tem sintomas físicos, os quais levam a um subdiagnóstico da depressão, uma vez que eles são muito confundidos com problemas de saúde que são comuns em pessoas idosas”, explicou. Somado a essa especificidade, Bruno aponta que os idosos têm menos propensão a relatar seus sentimentos de tristeza, o que dificulta na detecção da depressão.

Além disso, o tratamento da depressão no idoso também deve levar em conta diferentes fatores, como comorbidades médicas, sintomas físicos, o acesso a um serviço de saúde mental e possíveis medicações que serão ministradas ao idoso, uma vez que ele tem um organismo mais sensível e suscetível a psicotrópicos. Ainda, o psicólogo aponta que, em geral, os idosos têm uma resposta mais positiva à Terapia Cognitivo Comportamental, que vai lidar com a reestruturação cognitiva e resolução de problemas.

Bruno ainda destaca a questão das altas taxas de suicídio, ponto indicado pela OMS como uma preocupação global, a qual se reflete no Brasil. “Nós também temos que chamar atenção para a prevenção de suicídio, que é uma temática muito importante, uma vez que os idosos têm uma taxa de suicídio muito mais alta que outras faixas etárias. Eles chegam mais ‘às vias de fato’. Nesse sentido, a detecção e o tratamento da depressão são muito importantes”.

Saúde mental dos idosos como um oportunidade de mercado

Nesse cenário de urgência em torno da saúde mental dos idosos e dos desafios em torno desse cenário, surge a Sanii, healthtech focada na melhoria da qualidade de vida dessa população com uma solução voltada para o envelhecimento saudável e ativo. Em entrevista exclusiva, Michael Kapps, um dos fundadores da empresa, aponta que apesar da alta demanda, as soluções para o envelhecimento saudável são bem limitadas no Brasil e o que existe é, em geral, muito fragmentado.

“Na Europa ou no Japão, por exemplo, existe muita infraestrutura pública em torno do envelhecimento da população, além de haver uma cultura voltada para a comunidade. O Brasil não tem muito isso, os fatores de risco não são trabalhados e isso vai se tornar uma bomba relógio: vamos ter muitas pessoas com doenças crônicas, doenças degenerativas, etc. Então nós percebemos que isso é uma grande oportunidade para construir uma empresa de impacto com uma solução para essa demanda”, conta.

Michael também compartilha que o perfil da população 60+ tem mudado muito e aquela ideia estereotipada do idoso fragilizado e sozinho em casa enquanto seu filho busca por ajuda não pode ser levada como via de regra. O fundador da Sanii revela que, dos mil idosos que a empresa conversou durante o período de alguns meses, em torno de 2 ⁄ 3 dos casos a busca por um serviço veio dos próprios idosos. Ele destaca que isso apresentou variações de acordo com a idade e houve um destaque muito grande das mulheres, de forma que 90% da procura por um cuidado veio do público feminino, o que está muito ligado a uma questão cultural. No entanto, é necessário ressaltar que essa procura aconteceu principalmente em torno de uma mensagem de melhoria da saúde neurológica, e não de um cuidado específico para a saúde mental, que é vista com um olhar de preconceito, especialmente para essa faixa etária.

“No início nossa mensagem estava muito voltada para a ideia de ‘longevidade’, mas esse é um conceito um pouco abstrato para as pessoas. Então começamos a tocar em um dos maiores pontos de dor para o idoso, que é a saúde neurológica. Percebemos que o idoso admite e quer trabalhar a questão da memória, atenção e cognição. Há um declínio cognitivo natural com o envelhecimento, existe a questão dos fatores genéticos, mas tem muito a ser feito para melhorar esses quadros. Percebemos que uma mensagem mais voltada para a ‘saúde neurológica’ e ‘saúde do cérebro’ chama atenção e há uma procura maior, principalmente pelo próprio idoso”.

Essa busca ativa do idoso contrasta com a experiência de Bruno Camargo como psicólogo. No caso de Bruno, ele conta que, em geral, são as famílias que procuram ajuda para seus idosos, uma vez que estes tendem a minimizar suas queixas com o intuito de não dar muito trabalho e não querer gerar um impacto onde estão inseridos. Esse contraste se relaciona ao preconceito com a ideia de procurar ajuda para saúde mental e a mensagem que a busca por um psicólogo ainda transmite para sociedade.

Michael Kapps corrobora com essa questão do estigma em torno do cuidado da saúde mental, ressaltando que muitos idosos não contam para seus filhos sobre o que sentem. “O idoso não pensa que precisa de terapia e se nós falamos ‘vamos enviar um psicólogo para falar com você’, há muita resistência. Mas na Sanii nós conseguimos moldar um pouco esse discurso para mitigar um pouco dessa resistência, apontando que o psicólogo vai estar lá para treinar a memória desse idoso, por exemplo”.

Quanto ao impacto da pandemia, Michael entende que esse período trouxe consequências particularmente difíceis para essa população. “O primeiro efeito da pandemia é um estresse pós-traumático, no sentido de que esses idosos viram muitos amigos e pessoas da sua idade morrendo. Além disso, a pandemia aumentou o risco de desenvolver problemas de saúde mental, doenças neurodegenerativas, demências, Alzheimer, etc. Muitos idosos se viram sozinhos por dois anos e esse isolamento prejudica as conexões cerebrais. Ainda, outro ponto importante foi a criação de hábitos ruins e errados. Por exemplo, muitos se acostumaram a ficar apenas em casa, e nós sabemos que o isolamento social gera muitos problemas e é um fator de risco para a saúde mental”, ressalta.

Nesse sentido, na proposta da Sanii, Michael explica que a empresa faz uma avaliação 360, aplica instrumentos para compreender a parte cognitiva, a questão da atenção do idoso, a memória de curto prazo e o raciocínio lógico, além de entender a questão social e os pontos críticos em que esse idoso está inserido. Outros pontos que são analisados incluem o perfil do idoso, gostos, interesses e histórico familiar. Toda essa avaliação ocorre entre duas e três sessões e a healthtech também busca compreender as raízes de cada caso. A partir desses levantamentos um plano de cuidado é traçado para o idoso que envolve atividades estimulantes, uso de tecnologia, socialização, grupos de atividades, entre outros pontos.

“Da nossa experiência até agora, os idosos têm gostado muito dos planos e se adaptam muito bem. Estamos no começo, nossa amostra ainda é pequena, mas os resultados são promissores. Outro ponto é que nós temos escalas clínicas de avaliação, mas percebemos que a maior preocupação das famílias é se idosos estão felizes e se eles criaram uma conexão com as atividades propostas. Nesse sentido, nós buscamos engajamento, felicidade e qualidade de vida. Queremos ocupar um espaço de confiança da família”, conclui.