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Doenças Raras: tecnologia e gestão otimizada ajudam no prognóstico do cenário nacional

O panorama atual das doenças raras e as perspectivas para o futuro, segundo o geneticista Ciro Martinhago e Antoine Daher, presidente da Casa Hunter, Casa dos Raros e da Febrararas

Letícia Maia
9 min

O termo ‘doença rara’ já sugere que existam dificuldades para lidar com um diagnóstico desse tipo. E é fato que houve muito avanço no que se refere à regulação, tecnologias e tratamentos. No entanto, a conscientização sobre essas doenças e os protocolos dos sistemas de saúde ainda precisam de melhorias para poder oferecer maior qualidade de vida para um público que não parece diminuir. 

Até o momento, cerca de 8 mil doenças raras já foram registradas na literatura científica, mas estima-se que a cada ano pelo menos 250 novas doenças sejam descobertas. No Brasil, os dados apontam também que pelo menos 6% da população convive com alguma doença rara – o que equivale a cerca de 13 milhões de brasileiros. Quando expandimos para o cenário mundial, a estimativa de pessoas com doenças raras vai para 5%, equivalente a aproximadamente 300 milhões de pessoas. 

Nesse sentido, as tecnologias de edição genética são grandes aliadas. “A  prevenção é o melhor tratamento. O teste do pezinho hoje rastreia uma centena de doenças, dezenas de doenças raras e algumas delas têm tratamento”, afirma Ciro Martinhago, médico geneticista e diretor da clínica Chromosome Medicina Genômica

Estima-se que cerca de 70% das doenças raras começam a se manifestar na infância, bem nos primeiros anos de vida. Por isso, quanto antes descobrir o diagnóstico, mais rápido será para encontrar soluções que melhorem a qualidade de vida do indivíduo com uma doença rara. 

Por outro lado, 72% das doenças raras estão associadas às origens genéticas e são justamente essas as mais difíceis de encontrar tratamento. Logo, a melhor alternativa nesses casos é recorrer ao aconselhamento genético e fertilização in vitro.

O papel do aconselhamento genético

A melhor forma de prevenção contra uma condição rara é através do aconselhamento genético e fertilização in vitro. “Quando já se sabe que um indivíduo da família tem alguma mutação nos genes, é através da fertilização in vitro que conseguimos fazer a prevenção efetiva, porque essa mulher já engravida de um bebê sabidamente saudável”, explica o geneticista.

Para ilustrar a questão, vale relembrar das aulas de genética do tempo de escola e retomar os conceitos de genes alelos e hereditariedade desenvolvido por Gregor Mendel. De forma resumida, a letra “A” (azão) na sua forma maiúscula é usada para representar os genes dominantes, e o “a” (azinho) minúsculo designa os genes recessivos. Assim, a mãe oferece uma letra e o pai oferece a outra, sendo possível obter as seguintes combinações: Aa (azão-azinho, chamado de heterozigoto), AA (azão-azão, denominado homozigoto dominante) e aa (azinho-azinho, que forma um homozigoto recessivo).

Essa metodologia ajuda a estipular as probabilidades fenotípicas e genéticas. Caso uma pessoa tenha olhos azuis, por exemplo, significa que ele recebeu dois azinhos (aa) como herança genética. 

“Em doenças raras, a grande maioria delas é recessiva (aa), sendo uma mutação originária da mãe e outra do pai. Levando em consideração a amiotrofia espinhal, por exemplo, se os pais têm a mutação, mas não tem a doença, porque um tem gene normal e outro alterado, então eles têm 25% de chance de ter um filho com a doença. É uma doença muito comum no Brasil e hoje tem tratamento, só que é o tratamento mais caro da Indústria Farmacêutica, uma injeção sai por volta de 78 milhões de dólares”, explica Martinhago. Nesse sentido, o aconselhamento genético aparece como a medida de melhor custo-benefício.

Mesmo assim, a conscientização ainda não é suficiente. Isso porque, boa parcela das pessoas sabem que existem riscos para casais que possuem algum grau de parentesco. No entanto, “não há casal com risco genético reprodutivo zero”, explica Martinhago. 

Nos casos onde os casais não compartilham grau de parentesco e não possuem mutações genéticas ou má formação fetal em seu histórico familiar, ainda sim há de 2 a 3% de risco de gerar um bebê com alguma condição genética. Isso porque, a cada 100 bebês que nascem, 2 ou 3 apresentam má formação congênita. Além disso, 50% dessas malformações são de causas desconhecidas. 

Para esse tipo de situação, a prevenção torna-se mais desafiadora, mas não impossível. É possível rastrear os riscos desse público através da análise dos 500 mil genes mais comuns na população mundial, “pegamos aqueles de maior incidência na população mundial e rastreamos entre os dois, para ver se juntos há algum risco genético reprodutivo de gerar um bebezinho com uma dessas condições recessivas ou ligadas ao sexo”, conta Ciro Martinhago. 

A jornada até o diagnóstico 

“O desafio começa na falta de informação e reconhecimento nessa área tão importante que são as doenças raras, sejam elas genéticas ou não-genéticas”, afirma Antoine Daher, presidente da Casa Hunter, Associação de Doenças Raras, Febrararas (Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras) e cofundador da Casa dos Raros.

O especialista continua, explicando que “quando a gente usa o termo ‘genética’ isso nos lembra que a maior parte dessas enfermidades raras são de origem genética e por isso são tratadas por geneticistas. No país temos apenas cerca de 300 geneticistas, o que é muito pouco para uma rede tão grande de acesso à saúde do nosso país”, diz Daher. 

Com a escassez de especialistas em genética, o resultado é uma longa saga até obter o diagnóstico e alcançar o ponto de pensar em tratamentos. “A falta de conhecimento dos médicos é muito grande e isso faz que o paciente fique perdido na rede até que de fato chegue no lugar certo onde poderá fazer o diagnóstico. Mesmo ao chegar no centro de referência, após uma grande saga até achar alguém  que possa entender a doença, leva de 1 a 5 anos até ele conseguir ser atendido por um especialista no sistema público”, conta o presidente da Casa Hunter. 

A velocidade do processo não avança muito depois de chegar ao especialista ideal. Estima-se que entre fazer a bateria de exames necessários e marcar o retorno, o paciente pode levar mais um ano até chegar a um diagnóstico. Dessa forma, pode levar até 10 anos para que o paciente consiga um laudo concreto. 

No Sistema Único de Saúde (SUS), a média de tempo para obter um diagnóstico em doenças raras é de 5 anos e 4 meses. “Nós estamos falando de uma média de diagnóstico de cinco anos e quatro meses, sabendo que 30% dos que têm doenças genéticas raras morrem antes de 5 anos de idade. Só que não morrem em casa brincando, eles morrem fazendo suas famílias gastarem muito dinheiro tratando a consequência e sem tratar as causa”, reitera Antoine Daher. 

A solução para este cenário? Mudar os protocolos de abordagem com um plano de gestão diferente, além de modelos de atendimento e diagnósticos mais apropriados para a situação. “Atualmente estamos gastando muito, atendendo menos e com menos qualidade”, analisa Daher. 

Para aplicar soluções no sistema de saúde – tanto em âmbito público, quanto privado –, a Casa Hunter trabalha em parceria com a Febrarara. As mudanças começaram dois anos atrás, com a aprovação da ampliação do teste do pezinho, que passou a detectar mais de 50 doenças. 

Atualmente, a organização também foca em desenvolver projetos de lei para garantir a democratização do acesso à saúde no Brasil. Um dos principais deles é o projeto de lei “Lei Antoine Daher”, que obriga todos os centros de saúde do país, seja ele parte do público ou do privado, a atender em até 60 dias os pacientes com suspeita de doença rara. “Se esse projeto de lei for aprovado esse ano, nós vamos ter uma mudança radical na infraestrutura e na abordagem do diagnóstico desses pacientes”, explica o especialista. 

Os custos das doenças raras

Em 2020, o Ministério da Saúde divulgou que R$ 1,3 bilhão foi gasto em demandas judiciais por medicamentos em 2019. Desse valor, 1,2 bilhão de reais foi direcionado para medicamentos contra doenças raras. 

Além disso, um novo estudo feito pelo IESS (Instituto de Estudos de Saúde Suplementar) neste ano, indica que houve um aumento nas internações de beneficiários com doenças raras entre os anos de 2021 e 2022. 

O estudo identificou que o número de internações de beneficiários com doenças raras cresceu 20,4% na saúde suplementar entre 2021 e 2022. A doença falciforme foi a recordista em internações em ambos os anos, registrando 22.978 casos em 2021 e 31.081 em 2022. Estatisticamente falando, houve um aumento de 35%. 

Estima-se que de 60 a 100 mil pessoas sejam portadoras da doença falciforme no Brasil. Logo, as despesas das operadoras de saúde com essa doença aumentaram em 58%. Sendo 23,08 milhões de reais em 2021 e 36,44 milhões em 2022. 

“A regulação da incorporação de novos medicamentos desempenha um papel crucial na prevenção de custos excessivos tanto para o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto para a saúde privada, ambos com recursos limitados. Através da regulação, é possível negociar preços com as indústrias farmacêuticas em vez de pagar os preços mais altos do mercado para atender a decisões judiciais. Uma regulação eficaz é essencial para a sustentabilidade tanto do SUS quanto das operadoras de saúde privada”, descrevem os pesquisadores do IESS no relatório “Doenças raras: panorama dos gastos com internações nos planos de saúde do Brasil (2021 e 2022)”.

O futuro das doenças raras no Brasil

Para o futuro de quem lida com uma doença rara, as melhores perspectivas estão associadas às transformações que a medicina têm passado, graças aos investimentos em pesquisas direcionadas para doenças genéticas. Foi com esse foco que a ciência conseguiu desenvolver terapias-alvo. 

“Com certeza elas serão uma realidade mais próxima da população em geral nos próximos 7 a 10 anos. E isso não será apenas para doenças raras genéticas, mas para doenças comuns também”, afirma Antoine Daher.

Ainda no que se refere às tecnologias, Ciro Martinhago acredita que o “nosso maior obstáculo agora é exatamente esse, nós já conseguimos sequenciar todo genoma humano. Porém, enquanto nos Estados Unidos esse teste já chega direto ao consumidor por volta de 500 dólares, aqui no Brasil esse tipo de teste ainda custa por volta de 10 a 15 mil reais e não traz toda aquela informação que a gente gostaria. Então, em termos de exames, é bem possível que a gente esteja próximo de esgotar a quantidade de informação de teste. O problema é que ainda não conseguimos interpretá-la da forma como eu gostaríamos. Esse é um dos grandes desafios e que possivelmente será minimizado através da Inteligência Artificial, porque ela já não não usa três ou cinco variáveis como cérebro humano, ela pode utilizar centenas, até mesmo milhares de variáveis ao mesmo tempo”, conclui o geneticista.

Por fim, Antoine Daher afirma que o projeto piloto “Hospital dos Raros” já é um sucesso em Porto Alegre: o tempo médio de diagnóstico caiu de 5 anos e 4 meses para 41 dias. A ideia da Casa dos Raros é desenvolver um amplo ecossistema de doenças raras: “se der tudo certo levaremos o projeto para São Paulo e ele não apenas terá um Hospital da Casa dos Raros também, mas será um centro completo, oferecendo mais internações e cirurgias, distribuídos em um prédio de 18 andares. Isso vai revolucionar o modelo de tratamento e de diagnóstico para os pacientes com doenças raras”, conclui Daher.