A digitalização da saúde envolve muitos desafios, sendo um deles a integração dos dados em saúde. Muitas empresas vêm se mobilizando em torno dessa demanda, sendo uma delas a CM Tecnologia, investida da Green Rock. A empresa é pioneira na experiência digital do paciente e líder em API’s para a saúde. Em entrevista exclusiva, Fernando Soares, fundador de CEO da healthtech, conta sobre o gap que enxergou no setor, como a empresa se inseriu integrando ERPs e os desafios que enxerga nesse contexto de interoperabilidade, entre outros pontos.
Confira os principais pontos da entrevista abaixo.
Poderia contar um pouco da história da CM e do gap que vocês enxergaram?
Lançamos uma ferramenta para resolver a experiência digital do paciente e melhorar o atendimento de prestadores (hospitais, clínicas e laboratórios). Começamos com dois grandes clientes em Belo Horizonte e foi um sucesso, porque o paciente adorou agendar e escolher sua consulta, exame, médico, horário e dia de forma online, enquanto que para o prestador foi uma redução de custo e um ganho de eficiência operacional.
Depois, criamos o que chamamos de Jornada Digital do Paciente, ou seja, com o mesmo foco de melhorar essa experiência digital e melhorar o indicador de atendimento dos prestadores. Então, para além do agendamento online, desenvolvemos a confirmação automática, elegibilidade já conectada nos planos, portal do paciente e resultados online. Entregamos hoje um serviço completo de Jornada Digital do Paciente, totalmente integrada nos hospitais, clínicas e laboratórios.
A partir daí, surgiu uma ideia. O que fazíamos já era uma interoperabilidade de dados entre o sistema de agendamento e o sistema ERP da instituição. Enxergamos um mercado maior, que era o da integração e interoperabilidade. Vimos que com a nossa expertise de conectividade, conseguiríamos entregar uma ferramenta boa para o mercado.
Pegamos o round com a DNA Capital e Green Rock e construímos a plataforma de interoperabilidade. Fomos para o mercado em 2019, com uma nova business unit de conectividade e integração. Hoje integramos mais de 13 soluções de mercado, possuímos centenas de endpoints e APIs que conectam prestadores de serviço e produtos da área de saúde como indústria farmacêutica, startups, healthtechs em hospitais, clínicas e laboratórios. Nosso grande foco para o futuro é continuar escalando essa plataforma de Jornada Digital do Paciente que vamos reposicionar como Plataforma de Engajamento do Paciente e ser o grande integrador de dados da área de saúde.
O que você acredita que é o maior desafio da saúde no Brasil com relação a interoperabilidade?
Olha, eu acho que o maior desafio é o mindset dos gestores de saúde. Ainda existe um caminho para que entendam que integração e interoperabilidade geram eficiência, redução de custo, melhoria da experiência do médico e do paciente. Acho que o segundo desafio é investimento mesmo. A área de saúde precisa entender que investir em tecnologia tem retorno em todos os aspectos. E aí existe um terceiro desafio também que é a maturidade do setor como um todo, no sentido de entender que os dados são do paciente e que precisamos interoperá-los para proporcionar uma saúde mais eficiente, mais barata e mais acessível para todos.
O que você acha que falta para alcançarmos uma maturidade maior? É a questão do mindset mesmo ou você acredita que tem algum outro ponto?
Eu ia voltar no ponto do mindset. É claro que, olhando para trás quando fundamos a empresa, vemos que o setor evoluiu muito com relação a mindset, healthtechs e soluções que tentam sanar vários gaps do setor. Mas acho que ainda falta bastante. A tecnologia está pronta. Por que uma healthtech que resolve um grande problema de um hospital não consegue vender para 300 hospitais? Não existe escala de distribuição e infraestrutura na área de saúde. A questão do investimento, do mindset, isso tudo vai trazer maturidade para o setor.
Um dos grandes desafios da CM é justamente atuar na mudança desse mindset em um segmento em que a desconfiança é o padrão, certo? Como vocês vêm fazendo isso?
São três grandes pontos. O primeiro deles é educar o setor por meio da produção de conteúdo. Nós estamos criando conteúdos, explicando e mostrando para o setor quais são os benefícios. Quando falamos sobre interoperabilidade, temos vários stakeholders: paciente, médico, prestador, indústria farmacêutica, etc. Cada um deles tem uma lógica e um interesse. Então isso é muito complexo. O segundo ponto é tentar mostrar para eles que a plataforma tem uma infraestrutura que garante segurança, confiabilidade e que essa integração segue um padrão. Por fim, o terceiro ponto é mostrar que não estamos vendendo tecnologia nem infraestrutura, mas sim valor. Vou dar um exemplo. A Memed e a Anestech são healthtechs parceiras: elas vendem a solução delas e nós entramos como um parceiro integrador. Então, no final, o hospital vê que, com a CM, o projeto foi feito em 5 dias úteis. Ou seja, entregar valor na ponta de forma rápida é uma outra forma de mostrar o quanto a interoperabilidade está ajudando eles. Bom para os hospitais, os parceiros, os usuários dos sistemas, bom para todos.
Como você avalia que o mercado vem respondendo a esses desafios? Acredita que estamos caminhando bem?
Avalio que estamos caminhando a passos curtos, mas no setor saúde são “baby steps” mesmo. Não há crescimento exponencial quando falamos de healthtechs. Mas, acredito que o que mais tem funcionado é sanar gaps que geram valor para algum stakeholder importante da cadeia. Então, não estou vendendo interoperabilidade para os hospitais, estou vendendo um valor para eles que, conectado com a uma empresa de distribuição de materiais e medicamentos, gera um valor grande para os hospitais quanto a erros, compras, diminuição de estoque, e também gera para a empresa distribuidora enquanto visibilidade de estoque, entrega e eficiência.
Se olharmos para um setor que está cerca de 10/15 anos à frente, como as fintechs, vemos que lá se vende infraestrutura. Mas o setor de saúde está ainda muito atrás disso, então acho que vender infraestrutura e API talvez não seja o caminho de mostrar a eficiência da interoperabilidade.
Como você compara o contexto do Brasil com o cenário internacional?
A saúde no Brasil, como muitas verticais, tem um contexto diferente do resto do mundo. O setor aqui é muito complexo, e estou falando somente sobre a saúde suplementar. Com relação aos planos de saúde, tem-se às vezes um grupo de hospitais que faz acordos com determinados planos e há um volume de regras muito grande que aumenta essa complexidade. É muito difícil para o setor abaixar o custo. Vemos hoje operadoras com margens negativas e os hospitais pedalando.
Quando olhamos para os Estados Unidos, percebemos que o país já tem uma padronização de conectividade que nós não temos aqui. Na Inglaterra também já vemos uma interoperabilidade; em Israel e na China os dados já estão integrados. Enquanto isso, aqui no Brasil ainda tem um mindset muito voltado para “o dado é do hospital, ou da clínica”, quando, na verdade, ele é do paciente. Isso tudo dificulta esse processo.
Vou citar o exemplo do Open Banking, que é algo que os bancos não queriam no início. Foi um movimento forçado porque entendeu-se que esses dados precisavam ser interoperados pelo bem do usuário e do setor como um todo. Quando olhamos para os players de saúde, existem alguns lá fora, principalmente nos Estados Unidos, que já tem uma interoperabilidade vasta pela padronização de conectividade lá. Para chegarmos nesse nível de maturidade, também deve existir um padrão. É bem complexo, mas, novamente, a saúde evolui com “baby steps”.
No final do ano passado, entrou em vigor uma lei nos Estados Unidos que transfere a propriedade dos dados de saúde para os pacientes. Você entende que falta muito para o Brasil?
Olha, a solução tecnológica é algo que a CM tem. Nosso intuito é que lá na frente você consiga entrar no seu Iphone, clicar em “saúde” e acessar seu prontuário, por exemplo, do Einstein, do laboratório da Fleury, do Hospital Nove de Julho, ou qualquer outro grupo. Tecnologicamente, já entregamos isso hoje. Agora, para que tenhamos, de fato, acesso a todos os grupos, deveria haver um player, seja Android, Apple, um aplicativo do SUS ou uma startup, que vai criar uma wallet de saúde, vai comprar essa briga e utilizar o nosso conector de interoperabilidade. Acho que vai ter algum player para comprar essa briga no curto prazo e, em um segundo momento, vai ser uma questão de regulamentação mesmo, o Open Health vindo do governo.
Outro ponto é que lá nos Estados Unidos essa lei entrou em vigor, mas a Epic, por exemplo, que é uma empresa de registros médicos, já interoperava dados entre seus clientes, utilizando seu ERP. Mas para integrar outros, a empresa se fechava. Então, assim, existe toda uma estratégia de lock-in.
Qual o maior valor que se tem nessa integração dos dados?
Acredito que é a autonomia que nós, enquanto pacientes, temos e merecemos dos nossos próprios dados. Se pensamos em um paciente crônico, por exemplo, que o médico precisa do resultado de uma ressonância feita há anos ou de diversos resultados de exames feitos nos últimos anos, a falta de integração dos dados dificulta isso. O paciente vai correndo atrás de cada lugar para pegar os dados e está tudo despadronizado. Então, acho que o maior valor está em nós, como pacientes, termos a saúde em nossas mãos.
E quais são os próximos passos da CM?
Nós vamos fazer um rebranding no mês que vem. Vamos mudar nossa oferta de valor para o mercado na unidade de jornada digital do paciente, entregando algo muito mais amplo e com mais módulos em uma oferta que não tem no mercado hoje. Na unidade de interoperabilidade vamos entregar soluções e business cases claros para várias subverticais de saúde que precisam e querem integrar em hospitais. Então, esperamos que os próximos passos nos ajudem a escalar e crescer ainda mais, além de criar esse diferencial competitivo no mercado. A ideia de mudar o nome também representa uma mudança simbólica, uma vez que estamos passando por uma fase de reconstrução da nossa value proposition. Nossas soluções evoluíram e aumentaram suas entregas, por isso o sentido em reformular nosso posicionamento.
Que dica você daria para futuros empreendedores dentro da saúde?
Focar em uma grande dor do setor, fatiar essa dor, e atacar direto ao ponto. Tentar resolver todos os problemas ao mesmo tempo vai paralisar o empreendedor, ainda mais na saúde. Criar um power point ou um excel em que a empresa vai faturar bilhões é fácil, mas entregar valor e lutar contra esse mindset é muito difícil. É necessário ter muita resiliência. É preciso olhar uma dor grande e entregar valor aos poucos, porque tem espaço no mercado.