A Medicina vem evoluindo e o debate sobre a educação médica tem ganhado mais espaço no Brasil. Nesse sentido, as demandas do profissional médico – dada sua centralidade na cadeia da saúde – também vem chamando atenção. Nesse sentido, a Sanar surgiu unindo conhecimento e tecnologia para suprir algumas dessas necessidades e auxiliar na jornada de médicos e demais profissionais da saúde com conteúdos e produtos que os acompanham durante toda sua carreira. Em entrevista exclusiva, Ubiraci Mercês, fundador e CEO da Sanar, conta sobre a história da empresa, desafios e compartilha sobre algumas perspectivas a respeito da educação médica no Brasil.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
Qual a história da Sanar?
A Sanar iniciou em 2014. Basicamente, começamos fazendo páginas no Facebook e no YouTube em cima de “painpoints” da vida do médico. Quando o estudante de Medicina vai se formar, ele tem 60 especialidades para escolher, por exemplo. Mas qual especialidade é a melhor para a vida dele? O curso tem muito conteúdo e ele pensa “como eu posso ter um guia prático para a minha formação?”. Então nós começamos a montar essas micro comunidades para essas dores, servindo com conteúdos básicos e foi assim que elas cresceram bastante.
Conforme fazíamos a gestão dessas comunidades, começamos a descobrir necessidades no médico de um jeito que ninguém estava olhando. A partir daí, iniciamos a construção de conteúdos mais profundos de forma colaborativa. Chegamos a reunir centenas de profissionais médicos para escrever um único material. Nesse processo surgiu o SanarFlix em 2017, que ficou conhecido como Netflix da medicina, a primeira plataforma digital de suporte ao estudante para a graduação. Ao longo do tempo, fomos incorporando outras dores que atingem o estudante de Medicina, como a preparação para as residências, a formação nos temas mais relevantes em Emergência – para habilitá-los a atuar com segurança nos plantões após a formatura – e assim conseguimos nos tornar o produto de educação médica com maior número de usuários pagos na América Latina. Depois surgiu o Sanar Up, que foi o primeiro produto de crédito para estudantes de medicina. Sempre com a mesma lógica de descobrir uma necessidade iminente e criar a solução mais adequada no momento certo.
Hoje nós nos tornamos uma plataforma para toda a vida profissional do médico: somos parceiros desde o momento em que ele pisa na faculdade até seu último dia profissional. O objetivo da Sanar é ajudar a reinventar o médico e a expandir as suas capacidades para lidar com o sistema de saúde que, por sua vez, está em constante mudança. Fazemos isso atualmente por meio da entrega de conteúdo assertivo, treinamento de habilidades especializadas e crédito. O nosso dia a dia é nutrir uma forte relação de confiança com o médico.
Qual o maior desafio que você encontrou no meio desse caminho?
Foram vários. O primeiro desafio foi conseguir, de um lado, entender as demandas e as evoluções da medicina e conseguir distribuir esse conteúdo de um jeito célere, acessível e com um extremo cuidado com a qualidade do que estava sendo produzido. O ponto é que a medicina está evoluindo cada vez mais rápido e isso acontece porque existe uma pressão da ciência, da tecnologia, etc, situação que está só no início. A derivação disso é que temos protocolos médicos, por exemplo, que mudam todos os anos. O conteúdo médico está sempre em alta renovação. Além disso, a “jurisprudência” da medicina é única: uma novidade científica que acontece na China vale, em tese, para o mundo inteiro. Mas a distribuição desse conteúdo não acontece na mesma velocidade. Muitas vezes ela fica presa em silos, infelizmente.
Hoje vemos uma grande dificuldade estrutural do setor de possibilitar que o médico aprenda novos procedimentos, alguns na fronteira da medicina, e que estão em linha com o que o sistema de saúde do Brasil precisa e que gera muito valor para o paciente. Estamos resolvendo esses desafios desde que começamos a Sanar.
Tivemos também desafios em outras dimensões, como a construção de time e cultura. Nascemos em Salvador, mas sabemos que há uma concentração muito grande de tecnologia e de toda massa de talentos especializada em São Paulo. Então foi um desafio “furar essa bolha”. Conseguimos ter sucesso recrutando jovens talentos, que além de alta capacidade cognitiva tinham muita vontade de fazer acontecer, mas que não tinham experiências. Eles foram expostos a desafios mais complexos do que conseguiam lidar e a ambientes bem desafiadores. Foram esses fatores que ajudaram a construir uma empresa de talentos resilientes.
Outro desafio foi não ter o famoso subtítulo da Sanar – “a empresa Y da saúde”. Quando começamos parecia que era importante o empreendedor brasileiro olhar para o jornal do The Wall Street e simplesmente replicar o que estivesse surgindo lá fora para o Brasil. Nós não estávamos nessa bolha e isso foi muito importante porque traçamos uma jornada bem particular, com uma tese que inclusive desafiava algumas heurísticas existentes na indústria de captação. Foi desafiador explicar a companhia e como iríamos investir o dinheiro na época.
Sabemos que há uma discussão sobre mudanças em relação a um currículo da formação em medicina pensando em contemplar a digitalização, mudanças sociais, etc. Como vocês enxergam que o setor público e o mercado vêm respondendo a esses desafios? Vocês têm uma perspectiva boa para essas mudanças?
Primeiro, é importante dar um passo para trás e entender o que está acontecendo e como se dá a formação médica. Há uma iniciativa da Medicina ir para o interior do Brasil e isso é super importante. É provado que a formação médica no interior ajuda os médicos a penetrarem nessa região. Só que faltam especialistas e professores no interior ainda, o acesso não é simples.
Outro fato é que uma parte muito importante da formação médica é a especialização. Basicamente, essa etapa é servida pelas residências, que são alimentadas pelo governo. Como eu falei anteriormente, a medicina está evoluindo muito rápido e é preciso ter investimentos não banais no espaço. Hoje não há vagas suficientes nas residências e o Brasil precisa de especialistas, sobretudo nessas geografias que eu comentei.
Mas é importante ressaltar que a formação médica basicamente se dá em função de três coisas: bom professor, um bom campo prático de ensino com um bom método. Eu diria que essas deveriam ser as preocupações número 1, 2 e 3 do setor. Mas também não podemos negligenciar o fato de que o estudante de medicina mudou, seja por estar mais conectado, seja por ter uma outra característica social econômica.
Dito isso, o mercado precisa entender que a Medicina exige muito investimento. Precisa, também, ter a abordagem de incrementabilidade no longo prazo, ou seja, pequenas melhorias contínuas no tempo. Se entrar na lógica de eficiência máxima com o prisma de retorno de curto prazo, pode prejudicar muito esses pontos e ocasionar desafios de construir uma rede de professores bem capacitados com as novas linguagens de aprendizagem e um campo prático de excelência. Nós sabemos o impacto potencial disso no futuro.
O governo, que por sua vez ajuda a fazer um dos melhores programas educacionais que eu conheço que é a residência médica, tem dificuldade de realizar o investimento na mesma medida que a medicina e a persona evoluem. Por exemplo, os novos procedimentos na fronteira da medicina, como a robótica, exigem equipamentos mais caros. Isso é um desafio. Associado a esse fator estamos vendo que a educação médica vai precisar passar por uma evolução para acompanhar um novo médico geracional que está surgindo. Estamos aprendendo que nada é tão estático em um mundo que está transformando seus fundamentos. O governo tem seus desafios para fazer esses investimentos na velocidade que é necessário.
E o que vocês enxergam do cenário de educação médica no contexto internacional?
Existe o modelo americano, de um lado, em que se leva muito tempo para formar um médico especialista. A formação é bem rígida, mas muito lenta. E, por outro lado, existem alguns países que formam médicos especialistas de forma mais simples, sobretudo por uma condição estrutural. Ou seja, não abordam temas mais complexos com muita profundidade e acabam não entrando tanto na alta complexidade médica.
A propósito, eu diria que o Brasil está num ponto ótimo desse espectro e apresenta um grande potencial para a formação médica. Isso se dá porque temos professores muito bons, a exigência da formação médica é adequada, com um nível de regulamentação adequado. Entendo que o Brasil tem um ambiente fértil para se tornar um grande benchmark no mundo.
E a Sanar tem alguma empresa que serviu de benchmark ou não?
Não temos, não copiamos nenhum modelo. Não surgimos na bolha e isso nos deu empoderamento suficiente para construir a nossa história conforme acreditávamos. Então acabamos sendo inovadores e somos a única empresa que envolve o médico com uma única plataforma desde o momento em que ele pisa na faculdade até seu último dia profissional, entregando conteúdo, treinamento e crédito para destravar o potencial profissional. Agora, para cada uma desses pedaços das nossas soluções nós temos referências, mas não foi um “Ctrl C, Ctrl V”.
Quais são os próximos passos da Sanar?
O médico ainda é uma das partes mais importantes da saúde, porque grande parte das decisões dessa cadeia, que é uma das maiores indústrias do mundo, passam por ele. Então, a cada 0,01% de melhoria que é gerada para esse profissional tem um impacto brutal para o sistema de saúde. Vimos que o médico não estava tão bem assistido como poderia aparentar. Percebemos que nenhum player olha para o médico de forma integrada. E aí a Sanar tem produtos para quase 15 anos de jornada médica e a nossa visão é continuar nos consolidando com uma plataforma única para esse profissional. Queremos ser a grande plataforma para a vida dele.
Que dica você daria para futuros empreendedores na saúde? O que você entende que é um mercado com uma boa demanda hoje no Brasil?
Adoraria ter a resposta para essa pergunta! Vou responder começando com uma percepção para tentar trazer algumas oportunidades. Eu moro na Bahia, que tem 15 milhões de habitantes. Se eu perguntar para as pessoas quais cidades que elas se lembram daqui, elas vão, com certeza, conseguir falar no máximo de 10 a 12. A população somada dessas cidades irá representar cerca de 6 a 7 milhões de pessoas. Pergunto, onde estão os outros 9 milhões de pessoas? Quem faz o diagnóstico de precisão? Se alguém tiver alguma emergência, vai ter que ir para uma cidade a 500 km de distância? Cerca de 60% da população do estado está espalhada em diversas cidades com essas condições. A saúde é muito “municipalizada” e está sendo sub-atendida, pois o custo de operar nesses locais muitas vezes é incompatível com a capacidade financeira dos municípios. Isso não é visto no dia a dia, mas esse é o Brasil.
Entendo, também, que a saúde de alta complexidade dos grandes centros está muito bem resolvida. Existem oportunidades, mas ela está bem resolvida. No entanto, quando você olha para a saúde de baixa e média complexidade, não só não está resolvida como também existem muitas lacunas. Falta acesso a procedimentos, como a cirurgia de catarata, por exemplo.
As oportunidades mais aparentes estão na combinação desses dois fatores. Certamente, tecnologia e bons empreendedores vão ajudar a resolver esse problema.
Outra dica que eu daria é sobre o modus operandis no espaço. A saúde é um mercado grande, mas é importante entender que ele é constituído de vários pequenos pedacinhos. Não adianta chegar com a lógica das fintechs de que você está em um mercado de 100 bilhões de reais e que você vai ter uma única solução para destravar isso. Na minha visão, para montar um bom business no setor, o empreendedor deve estar confortável em ter que lidar com um nível de complexidade de modelo de negócio que cresce ao longo do tempo, pois vai ter que estar pronto para destravar novas oportunidades pari-passu à jornada. Portanto, paciência e pensamento de plataforma são os ingredientes para lidar com esse cenário – se você pensar bem, um hospital é isso. Por fim, não é recomendável a lógica de crescer super rápido, desde que o trade-off seja conhecido e o empreendedor tenha esse risco assumido na sua estratégia.