Insights

Saúde Suplementar: a culpa é do autismo?

O que diz Mauro Couri, superintendente operacional da Unimed FESP e Rogério Scarabel, advogado especialista em saúde suplementar, sobre a inflamada discussão referente ao tratamento de TEA na saúde privada

Letícia Maia

No início deste ano, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) divulgou um novo relatório, no qual mostra que os custos com autismo eram superiores aos  oncológicos. De acordo com os dados apresentados, enquanto os custos com oncologia estavam em 8,7%, os gastos com TEA atingiram 9,13% do total dos custos médicos.

O cenário preocupa planos de saúde, servidores e as famílias que lidam com o TEA. No entanto, como aponta Mauro Couri, superintendente operacional da Unimed FESP, detectar e solucionar os problemas dos tratamentos para pessoas com TEA é uma questão de saúde pública. Isso porque, por enquanto, o assunto ainda está em uma bolha, mas é questão de tempo até os custos começarem a causar problemas para além das questões financeiras das operadoras.

“Existe uma grande chance de em pouco tempo algumas operadoras quebrarem por conta desse custo, considerando que o autismo está crescendo e a judicialização também. Se isso acontecer, essas pessoas terão que procurar outras operadoras ou voltar para o sistema único de saúde (SUS), onde do diagnóstico ao tratamento pode demorar um ano”, explica Mauro Couri, superintendente operacional da Unimed FESP. 

Os elementos que estimulam esse cenário são vários. Na visão de Couri, o autismo “virou uma indústria. Existem pessoas vendendo ‘kit TEA’, material escolar TEA, cursos de pós-graduação a 35 reais black friday… eu tenho todos esses anúncios, cursos de 200 horas, 300 horas, 500 horas, porque não existe regulamentação”. 

Sendo assim, a falta de regulamentação estimulou a criação de clínicas de procedência duvidosa. Nesses casos, além de gerar prejuízos financeiros para as operadoras de saúde, o tratamento pode estar sendo feito inadequadamente, além de incluir famílias em situações jurídicas perigosas.

Pensando nisso, o Grupo Gradual em parceria com o Instituto ISS criou uma certificadora no Brasil, para definir quem está apto para ser supervisor, coordenador e o assistente terapêutico de atendimento. 

No Brasil, as certificações ainda não são obrigatórias. Mesmo assim, elas ajudam a filtrar quem está realmente apto ou não. Logo, é possível recorrer aos certificados internacionais, como os: ABAT (Applied Behavior Analysis Technician); QASP-S (Qualified Autism Service Practitioner-Supervisor); e QBA (Qualified Behavior Analyst).

Mas afinal, como esses problemas começaram?

Como começou

Os primeiros sinais surgiram em 2019. Como apontamos na newsletter anterior, o combo conscientização + alterações nos critérios citados no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) fizeram com que os diagnósticos aumentassem.  

Naquela época, havia certo estranhamento, mas até então, tudo continuava dentro dos custos estimados de sinistralidade. Eis que, em 2020, o número começa a duplicar no primeiro semestre, e a triplicar no segundo. A partir daí, os players de saúde procuram tentar entender o que estava acontecendo.

“O que estava acontecendo com algumas operadoras de plano de saúde menores – que possuíam estrutura local e estão, geralmente, no interior –, é que elas começaram a receber ações judiciais e liminares para oferecer o tratamento do autismo”, conta Mauro Couri. Ou seja, na ausência de infraestrutura própria dentro do plano de saúde, as famílias e pacientes estavam autorizados a fazer o tratamento em outros locais e seriam reembolsados por isso posteriormente.

Adentrando um pouco no mundo jurídico, Rogério Scarabel explica como funciona a autorização judicial: “Na primeira instância o que se vê são mais convicções pessoais, do que referências técnicas. Nesses casos é comum não haver tanta deferência. Já na segunda ou terceira instância, há mais chances do juiz autorizar, visto que são apresentadas informações técnicas”, explica o advogado especialista em saúde suplementar.

Complementando esse cenário, em 2022 a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) decidiu tornar ilimitadas as consultas para tratamento de transtornos globais de desenvolvimento (TGD) – o que engloba psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas – e o TEA é uma das condições que integram as TDG. 

Antes dessa decisão ser tomada, o limite de sessões para o tratamento do TEA nos planos de saúde variava de acordo com a operadora do plano. Em operadoras maiores eram oferecidas até 40 sessões por ano com psicólogo e/ou terapeuta ocupacional e 96 sessões por ano com fonoaudiólogo. Já em outras, em geral aquelas de menor porte, o limite poderia ser de até 20 sessões por ano com psicólogo; além de não cobrir fonoaudiologia ou terapia ocupacional. 

Considerando que cada pessoa com TEA possui características próprias, o tratamento precisa ser personalizado, o que impossibilita a padronização de quantidade de horas/sessões para cada tratamento. Porém, após esses dois anos “hoje já se sabe que é realmente necessário ter uma diretriz nacional sobre como deve ser feito o tratamento para TEA. Não pode simplesmente acatar a prescrição de uma receita sem apresentar um plano terapêutico adequado, com justificativas técnicas e clínicas”, reitera Scarabel. 

Além disso, “existem muitos advogados se aproveitando da situação, porque aproveitam as brechas da lei. Eles defendem o paciente e ganham porque não há nada regulamentado”, complementa o advogado. 

Com tudo isso, talvez você ainda pense que o problema disso tudo é o tratamento em si… mas, na verdade, não é bem assim. Vejamos no texto abaixo. 

Diretrizes, fraudes e desperdício

A urgência em estimular o diálogo entre as partes envolvidas se dá porque a ausência de diretrizes está fomentando fraudes e mais desperdício. Segundo dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), estima-se que as fraudes e desperdícios tenham custado cerca de 30 a 34 bilhões de reais para a saúde suplementar – representando de 11% a 12,7% da receita das operadoras. 

E onde o tratamento para TEA entra em tudo isso? Segundo Mauro Couri: “Tem-se observado alguns excessos, principalmente quando é feita a prescrição exigindo que o tratamento seja um ‘super tratamento’”. 

O “super tratamento” diz respeito aos casos em que, mesmo que na prática o paciente não necessite de tanto suporte assim, algumas clínicas tiram proveito da situação ao prescrever que todos precisam do máximo de assistência. 

Nesse sentido, o superintendente exemplifica com alguns casos, como: “uma criança que aparenta estar passando muito mais tempo na clínica do que em casa ou na escola. Ou seja, até 50h semanais de atendimento médico? Ou ainda, todos os casos precisam receber computadores da Apple e cadeiras especiais? Está correto que reembolsos associados ao tratamento tenham sido por volta de R$ 50.000?”

Para alguns casos, pode ser que sim e para outros não. Para avaliar isso, Couri aposta principalmente na regulamentação da profissão “analista do comportamento” no Ministério do Trabalho.

Na visão do superintendente da Unimed FESP, “essa profissão precisa ser regulamentada urgentemente. O Ministério do Trabalho tem que entrar nessa situação, exigir uma prova de habilitação similar a da OAB. Precisamos ter um código de ética específico para o analista do comportamento, já que o tratamento intensivo ABA apresenta questões sensíveis, como os mecanismos de recompensa e ‘punição’, utilizado para modificar um comportamento específico dessa criança”, afirma Mauro.

Possíveis soluções 

Além disso, entre outros elementos que precisam ser estruturados ou nivelados estão: o tempo de cada sessão; quantidade de sessões; métricas; plano terapêutico, métodos com embasamento científico, especializações que o profissional de saúde precisa ter e outros.

“Por ser uma experiência nova, podemos reverter e oferecer um bom tratamento, esse é o ponto. Não importa se são duas horas ou cinquenta, a prescrição deve levar em consideração o estado clínico do paciente e a perfeita, correta e adequada medida médica que ele precisa para se desenvolver”, reitera o superintendente da Unimed FESP.

Ademais, vale destacar que a família pode acabar se envolvendo em fraudes devido à falta de assistência. “O paciente está muito distante da operadora de saúde, então acaba sendo assessorado por outras pessoas, clínicas e profissionais que não possuem verificação”, completa Mauro. Logo, certificações e o oferecimento de instruções diretas poderiam minimizar as chances das famílias serem enganadas ou coagidas a entrar em tentativas de fraude. 

Realidade das operadoras de saúde

Por enquanto, de acordo com Mauro Couri, os problemas citados ao longo desta matéria estão atingindo as operadoras de saúde de forma heterogênea. Ou seja, enquanto algumas estão tendo mais prejuízos, outras ainda estão com as contas equilibradas. 

“Em 2019, todo o meu custo com autismo era 1%, menor do que quase todas as outras doenças. Em 2024, estou com 2,5%. Eu gasto 8% com material especial e gasto 12% com oncologia. Portanto, gasto 2.4% com TEA dentro da minha operadora. Estamos com tudo sob controle”, relata o superintendente operacional da Unimed FESP, responsável por 76 unidades do estado de São Paulo.

Enquanto a Unimed já se posicionou em prol do diálogo – além de ter sido um dos players que ajudaram a impulsionar as soluções propostas pelo Grupo Gradual – outras operadoras estão receosas de compartilhar seus dados e divergindo na forma de lidar com a situação. Se por um lado alguns querem dialogar, outros pensam em medidas mais extremas.

Segundo Mauro Couri, uma grande preocupação é quanto ao movimento que quer exigir da Agência Nacional de Saúde (ANS) uma mudança na sua legislação. “Provavelmente será criada uma DUT (diretriz de utilização) para tentar frear a situação. Se isso significar dificuldade de acesso, qualidade e credibilidade, as operadoras de plano de saúde perderão a credibilidade. Caso a ANS aprove dessa forma, a medida irá para o legislativo em ano eleitoral. Isso vai chegar em todas as instâncias e vai começar a ser motivo – como já aconteceu antes – de mães se acorrentarem na frente do STJ em manifestações na rua”, estima o superintendente. 

Para evitar que todas essas problemáticas cresçam, Mauro – assim como as especialistas entrevistadas na newsletter anterior – defende que operadoras, prestadoras, famílias, pessoas com TEA e demais envolvidos participem mais dos debates sobre o assunto. 

Assim, seria possível oferecer bons tratamentos e ainda balancear os custos – já que, no final do dia, tudo é repassado para o beneficiário em ajustes de mensalidade. 

Quer saber mais? Eis alguns conteúdos que podem complementar: