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Terapias Avançadas: o que são e quais os desafios de ampliar esse tipo de tratamento no Brasil

Destrinchando o mundo das terapias avançadas com a ajuda de Francisca Peixoto, da LifeLink Ventures e Suy Anne Rebouças, da JGP Health Care.

Letícia Maia

Imagine uma realidade na qual uma sessão de tratamento basta para curar uma doença. Ou ainda, finalmente encontrar cura para doenças genéticas, raras e/ou autoimunes. As terapias avançadas prometem ajudar em tudo isso.

Dessa forma, nos últimos anos, o Brasil tem se posicionado de forma a incentivar a produção desses tratamentos em território nacional e ampliar seu acesso. Isso porque, além de oferecer aos pacientes longevidade e qualidade de vida, seria possível também reduzir os custos com tratamentos contínuos no SUS (Sistema Único de Saúde).

Assim, desde 2020 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem dado ênfase nessa modalidade de tratamento. Atualmente, o Brasil já conta com oito tratamentos aprovados pela agência.

Consequentemente, em 2023 as movimentações desse segmento começaram a aquecer. Entre as principais, vale destacar que, em setembro de 2023, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) iniciou discussões sobre a inclusão dessas terapias nos planos de saúde, o que pode expandir ainda mais o acesso da população a esses tratamentos de ponta.

O mercado de terapias avançadas no Brasil também está atraindo novos investimentos. Em fevereiro de 2024, a FAPESP e a Embrapii destinaram R$ 150 milhões para Centros de Competência Embrapii. Desse valor, R$ 30 milhões são destinados especificamente para pesquisas de terapias avançadas.

Já em março, a Fiocruz estabeleceu uma parceria com a Caring Cross, uma organização sem fins lucrativos americana, para fomentar o desenvolvimento de tratamentos genéticos para câncer e doenças raras – incluindo terapias com células CAR-T, voltadas para leucemia, linfoma e HIV/Aids.

Outro evento importante ocorreu em junho, quando a biofarmacêutica chinesa Sinovac anunciou um investimento de 100 milhões de dólares, em parceria com a Fiocruz, para o desenvolvimento de novas terapias celulares — como vacinas e anticorpos monoclonais.

Mas afinal, o que são essas terapias e por que o acesso a elas ainda é limitado?

Entendendo as terapias avançadas

De acordo com a Anvisa, terapias avançadas são “produtos biológicos obtidos a partir de células e tecidos humanos submetidos a processos de fabricação. Essa categoria inclui também ácidos nucleicos recombinantes, que são moléculas de DNA ou RNA manipuladas em laboratório, com o objetivo de regular, reparar, substituir ou modificar a expressão de um gene”.

Dentro disso, segundo a Sindusfarma, as terapias são divididas em três categorias principais:

  1. Terapia celular – que envolve a administração de células inteiras, como células-tronco, células CAR-T e células NK.
  2. Terapia gênica – injeção de material genético (DNA ou RNA) para induzir, bloquear ou substituir um gene de interesse. Nessa área, é possível produzir tratamentos através das tecnologias baseadas em CRISPR, vetores virais e oligonucleotídeos.
  3. Engenharia tecidual – desenvolvimento de tecidos e órgãos artificiais para uso em humanos.

Apesar da distinção entre as frentes, não é impossível que um tratamento acabe utilizando mais de uma dessas abordagens. Mas, de todas as possibilidades que a humanidade já viu, as mais conhecidas são os tratamentos CAR-T e CRISPR. Por isso, vale destacar o mecanismo de cada um. Veja abaixo.

CAR-T

A sigla “CAR” é representante do termo “chimeric antigen receptor” (em português, receptor quimérico de antígeno). Já a letra “T”, refere-se ao linfócito T, um tipo de célula do sistema imunológico que consegue reconhecer antígenos existentes na superfície celular de agentes externos ou internos infecciosos e de tumores, produzindo anticorpos para combater tais invasores. Ou seja, atua como defesa do corpo.

Portanto, “uma célula CAR-T é um linfócito T que passou por uma modificação genética”, explica Suy Anne Rebouças, médica oftalmologista, doutora em biologia molecular e Portfolio Manager do fundo de ações JGP Health Care.

Para isso, “se isola as células T do paciente através de um procedimento chamado leucaférese, que coleta as células de defesa do paciente. Essas células T são então modificadas fora do corpo para se tornarem mais eficazes no combate ao câncer”, diz a especialista.

Assim, “as células do sistema imunológico do próprio paciente são direcionadas para atacar especificamente as células tumorais”, completa a médica.

Suy Anne destaca ainda que o processo não envolve a adição de material genético, como acontece em terapias gênicas tradicionais, mas sim a utilização de vetores virais para modificar as células T, de modo que elas expressem o CAR (receptor quimérico de antígeno), que se liga diretamente ao antígeno presente no tumor. “Esse processo é feito inteiramente fora do corpo, e depois as células modificadas são reintroduzidas no paciente, tornando-se um exército personalizado contra o câncer”, reitera.

CRISPR

Em 2020, a microbiologista Emmanuelle Charpentier e a bioquímica Jennifer Doudna ganharam o Prêmio Nobel de Química devido à descoberta da técnica CRISPR/Cas9, que permite editar o código genético de seres vivos.

A tecnologia CRISPR é uma ferramenta de edição genética, que permite alterar o DNA de maneira precisa e eficiente. O sistema CRISPR, originalmente encontrado em bactérias, funciona como um "sistema imunológico" que protege as bactérias de vírus, lembrando dos invasores através de fragmentos de DNA viral que são armazenados para referência futura.

O CRISPR utiliza três componentes principais: uma sequência de RNA guia, uma proteína chamada Cas9, e a própria sequência de DNA-alvo que será editada. O RNA guia serve como uma espécie de GPS, direcionando a Cas9 até o ponto exato do DNA onde ocorrerá a edição. A Cas9, derivada da bactéria Streptococcus, funciona como uma tesoura molecular, cortando o DNA na região designada.

Suy Anne explica que essa proteína Cas9, embora originalmente cause respostas imunológicas no corpo humano (pois vem de uma bactéria causadora de infecções), é modificada para ser mais segura e eficaz ao ser usada em tratamentos. Mesmo com essas alterações, o corpo ainda pode desenvolver uma resposta imune contra a Cas9, mas isso é cuidadosamente gerenciado para evitar problemas.

Depois que a Cas9 faz o corte, o DNA pode ser modificado de várias maneiras: pode-se inserir, remover ou substituir genes defeituosos. Essa tecnologia é promissora no tratamento de doenças genéticas, oferecendo a chance de corrigir mutações diretamente no DNA dos pacientes.

O momento atual das terapias avançadas

As terapias avançadas começaram como alternativas para tratamentos oncológicos. Porém, “nos últimos anos, temos visto um movimento interessante dessas tecnologias sendo transferidas para outras áreas terapêuticas”, afirma Francisca Peixoto, PhD em biomedicina e cofundadora da LifeLink Ventures, uma gestora de investimentos com foco em iniciativas de Life Sciences na Europa e nos Estados Unidos.

O que explica esse movimento é a alta competitividade e ritmo de desenvolvimento do setor oncológico — o que permitiu que chegassem em 2024 com um número significativo de terapias aprovadas. Por isso, agora o foco da indústria tem se direcionado para áreas que ainda enfrentam grandes lacunas terapêuticas.

Entre os exemplos, vale destacar a utilização de terapias celulares. Originalmente desenvolvidas e aprovadas para o tratamento de alguns tipos de câncer, essas terapias estão agora sendo testadas para doenças autoimunes, como as escleroses ou lúpus. Na verdade, “hoje existe um esforço crescente para adaptar esses tratamentos para doenças inflamatórias e autoimunes, um mercado gigantesco que, atualmente, carece de opções terapêuticas robustas”, aponta Peixoto.

Outro caso é o uso de anticorpos monoclonais que, após estabelecer-se na oncologia, está começando a ser aplicado em outras áreas, para tratar casos de fibrose pulmonar e fibrose em outros órgãos.

Ou seja, um reflexo da busca da indústria por adaptar e reaproveitar tecnologias de sucesso em oncologia para outras condições de saúde com grande necessidade médica.

Além das terapias celulares, estão emergindo também as categorias de terapias baseadas em RNA (ácido ribonucleico), uma nova abordagem que mostra sinais promissores, dado o maior potencial de segurança – em comparação às terapias genéticas tradicionais que alteram o DNA. “Ao atuar no RNA, que é transitório, os efeitos colaterais podem ser mais controlados, oferecendo flexibilidade terapêutica, algo que não é possível com a modificação direta do código genético”, explica Francisca.

Há também uma tendência crescente em torno das moléculas pequenas (small molecules) covalentes, que se ligam permanentemente ao seu alvo, oferecendo uma resposta terapêutica mais estável e duradoura. Embora a toxicidade potencial ainda seja um desafio, essas moléculas têm despertado grande interesse devido ao seu poder de ação prolongado.

Ademais, atualmente o Brasil conta com oito terapias avançadas aprovadas pela Anvisa. São elas:

  1. Luxturna – tratamento contra perda de visão causada por distrofias hereditárias da retina;
  2. Zolgensma – terapia gênica para Atrofia Muscular Espinhal (AME) em crianças com até dois anos;
  3. Carvykti – tratamento de mieloma múltiplo recidivante ou refratário;
  4. Kymriah – tratamento contra linfoma não-Hodgkin (LNH) e leucemia linfoblástica aguda (LLA) de células B;
  5. Yescarta – tratamento para linfoma de grandes células B e linfoma folicular;
  6. Tecartus – tratamento de linfoma de células do manto em adultos com recidiva ou refratário.
  7. Roctavian – aprovado no Brasil em 2024, trata-se uma terapia para pacientes adultos com hemofilia A grave sem histórico de inibidores do fator VIII.
  8. Upstaza –  terapia única de substituição genética indicada para pacientes com 18 meses ou mais com diagnóstico clínico, molecular e geneticamente confirmado de deficiência de descarboxilase de L-aminoácidos aromáticos (AADC) com fenótipo grave.

Desafios da ciência e do mercado

Por outro lado, não podemos pensar em avanços sem falar dos desafios. Nesse sentido, podemos apontar alguns como os principais: os altos custos, que interferem no potencial de escalabilidade, além das questões científicas.

Custos

Em geral, produzir terapias avançadas é complexo e caro. "Para desenvolver um medicamento, pode-se levar de 10 a 15 anos e gastar até 2 bilhões de dólares”, explica Suy Anne Rebouças.

Com custos tão elevados, a preocupação é: como as farmacêuticas vão recuperar o investimento se o tratamento é administrado apenas uma vez?

“O custo do tratamento é alto, porque estamos falando de uma nova perspectiva: tratar a raiz do problema. Um tratamento em dose única para uma doença séria – se comprovada eficácia persistente ao longo dos anos – pode gerar uma grande economia aos sistemas de saúde no longo prazo. No Brasil, cabe aos planos de saúde e ao governo decidirem qual a melhor forma de pagar por esses tratamentos revolucionários”, afirma Rebouças.

Nesse caso, estamos falando das fabricantes desses tratamentos e como elas precisam de preços altos para recuperar o investimento aplicado. Por outro lado, como Suy Anne indaga, "qual plano de saúde consegue pagar 2 milhões de dólares por um tratamento único? No caso do CRISPR, por exemplo, existem tratamentos para anemia falciforme com valores na casa de US$ 2,2 milhões (Casgevy) e US$ 3,1 milhões (Lyfgenia)”, exemplifica a médica.

Nesse sentido, do ponto de vista mercadológico, as terapias avançadas são atrativas principalmente pela possibilidade de reduzir custos. Isso porque diversas condições exigem tratamentos caros, sem perspectivas de cura, contínuos e com uma ampla gama de efeitos colaterais. Ou seja, no final do dia, o paciente ainda não usufrui da qualidade de vida que merece e as operadoras pagam caro por esse resultado.

A título de exemplo, a Fiocruz esquematizou o potencial das terapias avançadas para a economia do SUS. Veja na imagem abaixo:

Créditos: Arte de Rodrigo Carvalho (CCS/Fiocruz)

Porém, pagar por esses tratamentos é mais uma questão de poder, do que querer. Um dado que aponta a dimensão dessa questão vem do estudo realizado pela QuantiSaúde, a pedido da União Nacional das Instituições de Autogestões em Saúde (UNIDAS). De acordo com a análise, o custo de uma única dose de Zolgensma ultrapassaria o faturamento anual de 7,83% das autogestões filiadas à entidade, enquanto outras veriam 20,87% do rendimento reduzido pela metade.

Além disso, as análises da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) indicam que 62% dos planos de saúde, em um mês, não conseguem faturar o valor desses tratamentos. Vale ressaltar que esse dado refere-se às operadoras de menor porte.

Pensando nisso, no ano passado, a Abramge apontava para a possibilidade da criação de um fundo específico para oferecer esses tratamentos. Basicamente, a ideia é dividir o risco e o impacto orçamentário. Para isso, estuda-se também se o ideal seria um fundo público ou um privado. Entre outras sugestões, a UNIDAS também cogitou estabelecer um “resseguro”, para ser contratado quando houvesse a necessidade de cobrir algum caso nos planos.

Essa questão foi explorada com maior profundidade nesta matéria do portal Futuro da Saúde.

Por fim, embora algumas dessas terapias se tornem mais acessíveis à medida que a capacidade de produção aumenta, outras, devido à sua complexidade intrínseca, continuarão sendo caras. Mas, “terapias baseadas em RNA, por exemplo, têm potencial para serem mais baratas do que terapias genéticas ou com anticorpos monoclonais”, complementa Francisca Peixoto.

Obstáculos científicos

A parte científica de utilizar tecnologias genéticas, como o CRISPR, também é um desafio. Isso porque, "quando começamos a usar o CRISPR, havia muito medo das mutações inesperadas. Esse efeito é chamado de 'off-target', ou seja, errar o alvo. Quando você usa o CRISPR em um genoma complexo como o humano, pode acabar cortando o DNA na parte errada," explica Suy Anne.

A boa notícia é que, em cinco anos de acompanhamento, o CRISPR para hemoglobinopatias não apresentou mutações off-target ou desenvolvimento de novos tipos de câncer.

Outra preocupação está associada à terapia CAR-T. Em novembro de 2023, a agência americana de saúde FDA (Food and Drug Administration), anunciou que estava investigando casos de pacientes que desenvolveram um segundo câncer após o tratamento.

Em entrevista ao portal do NIH (Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos), a médica Stephanie Goff, especialista em desenvolvimento e teste de terapias com células T modificadas geneticamente e integrante do NCI (Instituto Nacional do Câncer, também dos EUA), cita dois estudos sobre essa questão.

Enquanto a investigação maior não conseguiu encontrar a relação direta do tratamento com o desenvolvimento de um segundo câncer, o outro sugeriu que as terapias CAR-T podem ter contribuído para que o fenômeno acontecesse.

De modo geral, as tecnologias de bioinformática e inteligência artificial podem ajudar a reduzir esses riscos. No entanto, o potencial dessas tecnologias têm sido limitado pela falta de compartilhamento da base de dados. “Mesmo com esses avanços, as pesquisas ainda são protegidas pelas empresas, o que limita o compartilhamento de dados e dificulta o desenvolvimento de soluções mais rápidas e eficazes”, destaca Suy Anne.

Ademais, replicar a eficácia de certos tratamentos em modelos pré-clínicos é um desafio, já que os modelos animais nem sempre imitam a progressão da doença em humanos, o que torna a transição para ensaios clínicos arriscada.

O futuro do mercado

Atualmente, pode-se dizer que são poucas as marcas realmente lucrando com as terapias avançadas. Na verdade, o portal especializado GenNews sugere que apenas dez tratamentos estão entram nessa lista.

A título de exemplo, vale considerar o valor obtido com a venda de tratamentos em 2023. Veja na lista abaixo:

1. Yescarta, da Kite, uma empresa Gilead – US$ 1,498 bilhão;

2. Zolgensma, da Novartis – US$ 1,214 bilhão;

3. Kymriah, também da Novartis – US$ 508 milhões;

4. Carvykti, da Janssen Biotech (Johnson & Johnson) e Legend Biotech – US$ 500 milhões;

5. Abecma, da Bristol Myers Squibb e 2seventy bio –  US$ 472 milhões;

6. Tecartus, da Kite, uma empresa Gilead– US$ 370 milhões;

7. Breyanzi, da Bristol Myers Squibb – US$ 364 milhões;

8. Elevidys, da Sarepta Therapeutics  – US$ 200,356 milhões;

9. MACI, da Vericel – US$ 164,8 milhões;

10. Luxturna, da Spark Therapeutics (Roche) – cerca de US$ 51 milhões.

Apesar de ainda se tratar de um grupo seleto, as coisas podem mudar quando novos tratamentos receberem aprovação nos Estados Unidos e na Europa. Segundo a Alliance for Regenerative Medicine, até 17 novas terapias celulares e genéticas devem ser aprovadas nessas regiões ainda em 2024.

América do Norte x Europa x América do Sul

Enquanto o ritmo nos outros continentes parece um tanto acelerado, aqui na América do Sul o entusiasmo vem acompanhado de cautela.

Um dos motivos para essa diferença de cenário está na diferença de foco de cada área. Conforme explica Francisca Peixoto, “nos Estados Unidos, por exemplo, as startups de biotecnologia já nascem com foco no mercado e desenham estudos científicos já pensando em atrair investidores. Já na Europa, o foco tende a ser na pesquisa acadêmica, o que pode atrasar a validação e comercialização de produtos”.

Já na América Latina, especificamente no Brasil, “as inovações penam para passar das fases mais iniciais, muitas vezes com validação científica limitada, o que dificulta a atração de investidores”, aponta Francisca. No entanto, a aprovação da nova lei de pesquisas clínicas no Brasil traz expectativas de um aumento no número de estudos clínicos e no desenvolvimento de terapias avançadas nos próximos anos.

Ademais, para o futuro, espera-se que as terapias avançadas, como as voltadas para doenças autoimunes e inflamatórias, ganhem cada vez mais espaço, com novos produtos aprovados nos próximos anos.

“Ainda que essas áreas sejam complexas, há uma expectativa de que esses tratamentos avancem mais rapidamente em comparação a áreas como as doenças neurodegenerativas, onde o entendimento da biologia da doença ainda é limitado”, conclui a cofundadora da LifeLink Ventures.