O processo de descoberta de novos tratamentos envolve várias fases, entre elas os ensaios clínicos. Embora o desenho e a implementação desses ensaios tenham evoluído ao longo do tempo, ainda há uma variabilidade de resposta entre os indivíduos participantes que não é completamente explicada por fatores de ambiente, idade ou nutrição. Os estudos em torno da explicação para essas diferentes respostas avançou com os estudos do genoma humano. É o que aponta um artigo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Assim, a farmacogenética surgiu da interseção entre genética, bioquímica e farmacologia. Essa área, que é um dos alicerces da medicina de precisão, investiga como os genes interferem na resposta a determinados medicamentos. Em resumo, variações na sequência genética resultam em uma variabilidade na resposta aos medicamentos. Além disso, o conhecimento das sequências e alterações genéticas fornece dados úteis para a prevenção e intervenção médica direta. Esse conhecimento é traduzido como medicina personalizada ou medicina de precisão.
“A medicina de precisão, ou medicina personalizada, é a customização de tratamento médico com base na capacidade de classificar indivíduos em subpopulações que diferem na susceptibilidade a uma determinada doença ou na resposta a um tratamento específico” – é como define uma publicação de 2020 do IPEA. Em suma, a medicina de precisão une dados que são comumente usados para diagnóstico e tratamento de um paciente, como sintomas, histórico familiar e exames complementares, com o perfil genético do indivíduo.
De acordo com um estudo de 2019 da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em torno dos anos 1980, a biomedicina sofre transformações a partir de avanços na biologia molecular, biotecnologias, genômica e outras inovações. “A molecularização da biomedicina é parte desse processo de transformação tecnocientífico em que uma nova forma de olhar e compreender o corpo em seu nível molecular passa a complementar, senão suplementar, o olhar clínico tradicional”, aponta o estudo.
Ao longo desses avanços, surgiu a denominação de medicina personalizada no final dos anos 1990, marcado pela farmacogenômica e a possibilidade de desenvolvimento de remédios voltados para as características genéticas de um grupo populacional específico. Mas esse termo da medicina personalizada tem perdido espaço nos últimos tempos para o conceito de medicina de precisão, que ganhou destaque quando passou a ser associado a importantes projetos de pesquisa de sequenciamento genômico nos Estados Unidos e na China.
A preferência pelo termo “medicina de precisão” tem relação com uma percepção de que a medicina sempre foi personalizada na prática clínica. Nesse sentido, alega-se que designação de “medicina personalizada” pode ser interpretada de maneira equivocada, dando a entender que se refere ao desenvolvimento de tratamentos e medidas preventivas exclusivas para cada indivíduo, em vez de abordagens que se aplicam a segmentos da população.
Ainda, para além da denominação, a compreensão sobre a medicina de precisão também se amplia e seu potencial deve considerar alguns âmbitos. Um artigo de 2020 do IPEA constata: “Do ponto de vista do tratamento, permite a escolha de drogas que minimizem efeitos colaterais e que produzam os melhores resultados. Sob a ótica da prevenção, permite a detecção da susceptibilidade a certas patologias, mesmo antes que elas se manifestem clinicamente, possibilitando seu monitoramento e até mesmo prevenção. Do ponto de vista da indústria, permite o desenvolvimento de soluções para indivíduos ou grupos de pacientes que não responderiam a tratamentos convencionais e pode potencialmente reduzir os custos e a demora dos ensaios clínicos”.
Em entrevista exclusiva à Green Rock, Ricardo Di Lazzaro, médico e co-fundador da Genera, primeiro laboratório de genética “direto ao consumidor” do Brasil, explica que o conhecimento do indivíduo sobre suas predisposições pode levá-lo previamente a mudanças de hábitos ou até mesmo a indicações específicas sobre o uso de medicamentos.
“Você conhecer mais suas predisposições e riscos genéticos é algo muito relevante. Isso pode ser desde uma intolerância à lactose, em que você pode simplesmente mudar o hábito e diminuir a quantidade de leite para ter menos desconforto intestinal, até condições mais complexas como o fator V de Leiden, que indica por exemplo um risco altíssimo de trombose, principalmente com o uso de alguns tratamentos hormonais”, relata.
A base da medicina de precisão: os testes genéticos
Os resultados de testes genéticos podem ser avaliados para antecipação da predisposição individual a certas doenças com base no perfil genético. Ou seja, eles podem prever o risco de uma pessoa desenvolver determinadas doenças. Nesse sentido, terapias celular e gênica também se enquadram na medicina de precisão, com ênfase atual em condições como leucemia, doenças degenerativas da retina e linfoma.
Para além do âmbito da prevenção, os testes genéticos possibilitam uma avaliação sobre o potencial de resposta de uma terapia, sendo de suma importância para a medicina de precisão. Quando dados genéticos são cruzados com informações farmacêuticas e clínicas, os pesquisadores conseguem identificar padrões de eficácia e como as variações genéticas se relacionam com esses resultados. Dessa forma, os ensaios clínicos podem testar essas hipóteses, levando ao estabelecimento de melhores diretrizes clínicas no tratamento de certas condições.
Segundo o National Institutes of Health, em 2017, mais de 50 mil testes genéticos estavam disponíveis para cerca de 10 mil diferentes condições clínicas. Um dos maiores focos é o câncer, mas existem testes voltados para a identificação de variações em enzimas associadas ao metabolismo de antidepressivos, anticoagulantes e inibidores de bomba de prótons.
A terapia genética com edição do genoma também ganhou força a partir de 2012 com o desenvolvimento do sistema CRISPR/Cas9 (Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats), conforme indicado no artigo “Medicina de precisão/medicina personalizada: análise crítica dos movimentos de transformação da biomedicina no início do século XXI”. Essa ferramenta oferece uma forma de correção sobre mutações genéticas em doenças raras e doenças complexas, como uma tesoura que detecta e corta trechos de DNA, ordenando o código genético.
O avanço da medicina de precisão no mundo
Os testes genéticos e a medicina de precisão vem avançando no mundo, mas em um compasso diferente dependendo de cada localidade. Há um destaque para os Estados Unidos. De acordo com a OCDE, em 2016 o investimento em medicina de precisão foi de US$ 215 milhões, sendo US$ 130 milhões alocados no National Institutes of Health (NIH) e US$ 70 milhões no National Cancer Institute.
Já no contexto europeu, vale ressaltar o projeto “Personalized Medicine 2020 and Beyond” da Comissão Europeia, o qual visa disponibilizar medicina de precisão para a população e fomentar o desenvolvimento de pesquisa estratégica. Países europeus se engajam em estudos focados no câncer e em doenças raras. Entre eles, há um destaque de investimentos em países como a Alemanha e o Reino Unido.
Já no Brasil, existem avanços, mas também muitas lacunas. Ricardo Di Lazzaro conta que o maior destaque no país está na área de Oncologia. “O tratamento dos tumores é indicado em função da expressão gênica e das mutações deles. Isso já é utilizado – não de maneira tão acessível – mas já existe como algo disponível no Brasil”, relata.
Em contrapartida, ele salienta algumas lacunas: “Lá nos Estados Unidos, por exemplo, centenas de medicamentos já contém na bula informações de fármacogenética. Por exemplo, se você tem tal alteração genética, você deve tomar uma dose mais baixa ou alta de um determinado medicamento. Isso é algo que não tem no Brasil. Falta informação, tanto na bula, que poucos medicamentos tem, quanto para os próprios profissionais utilizarem esses dados para um tratamento mais personalizado”.
Além disso, Di Lazzaro indica que além dos avanços recentes em tratamentos oncológicos e de doenças raras, a área da psiquiatria também é vista como promissora e tem ganhado uma certa força no Brasil. “A psiquiatria também utiliza certos testes genéticos em algum nível de indicação de tratamento. Em compensação lá fora existem levantamentos que falam que cardiologia é uma área que usa bastante isso e aqui no Brasil não é algo muito explorado”, acrescenta.
Os desafios da medicina de precisão
Ainda que haja um grande potencial e que os avanços da medicina de precisão no Brasil e no mundo sejam perceptíveis, vários desafios precisam ser superados, desde custo até acessibilidade e questões éticas e sociais. As tecnologias são caras e há uma necessidade de mais investimento em pesquisas e na informatização dos sistemas de saúde, facilitando a integração e acesso aos dados dos pacientes. Além disso, muitas dessas tecnologias importantes na medicina de precisão são novas, não sendo acessíveis a todo o mundo. Ainda, existe uma discussão sobre a proteção das informações de saúde dos participantes de estudos.
No contexto brasileiro, co-fundador da Genera destaca dois desafios: a educação médica e o acesso. “O Brasil é um país pobre e testes genéticos exigem um poder de compra maior. Os testes moleculares acabam sendo algo mais exclusivo. Em países desenvolvidos o acesso é maior. Por outro lado tem essa questão da educação médica. Grande parte dos profissionais não têm esse conhecimento e formação na faculdade. A área genômica ficou historicamente muito separada da área médica e isso trouxe aqui um reflexo que vemos até hoje”, indica.
Outro ponto a ser destacado é o desconhecimento populacional sobre a medicina de precisão. Em 2018, uma pesquisa de opinião pública feita pelo Personalized Medicine Coalition na população norte-americana levantou que mais de 60% não conheciam esse conceito. Ainda, quando as pessoas entendem do que se trata, há em geral uma recepção positiva, mas isso não é apartado da preocupação com a segurança com seus dados.
Sobre esse ponto, Di Lazzaro entende que há uma discussão mais intensa nos Estados Unidos. “Eu entendo a importância do cuidado, o dado genético é um dado sensível. Na Genera a gente segue a LGPD, temos todos os cuidados com o acesso e segurança de dados. Mas pessoalmente, eu sou muito a favor da abertura dos dados, principalmente pensando no desenvolvimento de produtos e pesquisa. Eu compartilho meus dados genéticos em diversas plataformas e estudos, mas essa é uma decisão individual. Mas entendo que ainda assim talvez haja uma preocupação um pouco exacerbada em alguns sentidos”, conclui.
O potencial de um país miscigenado e o investimento no Brasil
Di Lazzaro também reflete sobre a importância do sequenciamento da população brasileira no cenário de avanço da medicina de precisão. “A população brasileira é miscigenada e tem um componente relevante de africanos e indígenas. Então, o desenvolvimento de uma análise genética lá fora muitas vezes não é traduzida de uma maneira perfeita no Brasil. Não é que ela não vai funcionar, mas funciona provavelmente um pouco pior”, aponta.
Ele explica que muito do que se sabe sobre fatores genéticos para diferentes doenças foi estudado a partir de populações de ancestralidade europeia. Ou seja, em uma população miscigenada como a brasileira, os resultados podem diferir. Nesse sentido, quando se pensa no avanço da medicina de precisão, o sequenciamento da população brasileira tem um papel muito importante.
“Nós estamos avançando. A Genera hoje tem a maior base de dados genômicos da América Latina. São quase 300 mil pessoas que já fizeram o teste conosco e nós temos acesso aos dados, conseguindo fazer pesquisa e desenvolvimento de produtos a partir disso. Agora, se formos olhar em termos de publicação científica e bases de dados internacionais, por mais que haja um esforço da comunidade científica em tentar trazer resultados de populações diversas, proporcionalmente as análises são mais europeias”, aponta.
Ainda, ele acrescenta que esse componente miscigenado é uma oportunidade para descobertas inéditas. Os genomas não europeus ainda fazem parte de um terreno inexplorado. “Sem o sequenciamento da nossa população, perdemos a possibilidade de, enquanto país, desenvolver produtos que funcionam muito melhor para a nossa própria população”, adiciona.
Vale ressaltar que além das iniciativas privadas em torno da medicina de precisão, o setor público também tem anunciado investimentos na área. A ciência e tecnologia genômica vem sendo pouco a pouco incorporada na pesquisa médica. Em 2015 houve o lançamento do Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMed) em São Paulo, iniciativa que juntou centros de pesquisa em torno da implantação da medicina de precisão no país.
Ainda, dentre os testes genéticos que constam no Brasil, inclui-se a genotipagem de até um milhão de polimorfismos e o sequenciamento completo do exoma. Essas opções têm por objetivo identificar mutações genéticas relacionadas a doenças, avaliar suscetibilidades genéticas e fornecer dados sobre tratamentos personalizados para uma variedade de medicamentos.
Já agosto deste ano, O Ministério da Saúde divulgou que vai investir R$ 100 milhões em pesquisas sobre Saúde de Precisão com o objetivo de estimular o desenvolvimento científico e tecnológico do país na área. A ação vai investir em projetos que devem levar em conta a aplicabilidade no Sistema Único de Saúde (SUS) e faz parte do Programa Nacional de Genômica e Saúde de Precisão – Genomas Brasil.