A ascensão das pesquisas com substâncias psicodélicas está muito ligada ao aumento das doenças mentais no mundo, em especial, aos casos de depressão refratária (resistente). Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 322 milhões de pessoas sofrem de depressão no mundo.
Na América Latina, os brasileiros também têm muito a se preocupar: são os recordistas da doença no continente, atingindo aproximadamente 11 milhões de pessoas, conforme os dados da OMS. No entanto, quando falamos de tratar depressão com psicodélicos, nos referimos aos casos em que os tratamentos convencionais não funcionam.
Nesse sentido, em 2019, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) apresentou um estudo observacional multicêntrico onde estimava que de 30% a 40% dos pacientes com depressão na América Latina não respondiam às medicações, tornando-os então mais suscetíveis ao suicídio. O estudo foi realizado com 1.475 participantes de países como Brasil, Argentina, Colômbia e México. Nesse aspecto, os dados sobre os brasileiros se destacam: ao menos 40,4% dos pacientes apresentam casos considerados como depressão resistente.
Além disso, a demanda não parece inclinada a diminuir. A OMS estima que até 2030 a depressão seja a doença mais comum no mundo, superando as doenças cardíacas e os cânceres. No entanto, os psicodélicos possuem um potencial mais abrangente, as pesquisas atuais também buscam soluções para tratar transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), narcolepsia, síndrome do pânico e dependência a opiáceos (causada pelo uso de substâncias como morfina, codeína, heroína, hidrocodona e outros).
De encontro a esse cenário, estão as perspectivas para o mercado psicodélico. De acordo com o Psychedelic Drugs Global Market Report, feito pela The Business Research Company, o segmento deve crescer cerca de 15,1% em 2024 – saindo do patamar de 4,88 bilhões de dólares em 2023, para movimentar 5,62 bilhões de dólares neste ano. Para os anos seguintes, a estimativa é de crescimento rápido e até 2028 deve movimentar 10,2 bilhões de dólares na indústria.
Os fatores para tal otimismo? Ainda segundo o relatório, o cenário regulatório está avançando, a conscientização em relação à saúde mental também e há maior aceitação quanto a esse tipo de tratamento, tanto por parte dos pacientes, quanto dos médicos.
Movimentações relevantes do mercado
Para chegarmos ao cenário atual, alguns acontecimentos foram essenciais. Houve o momento histórico por volta da década de 60, quando diversos estudos eram feitos com drogas psicodélicas, até que o movimento da contracultura na década de 1970 incitou o encerramento desses estudos e a proibição do uso recreativo.
Por volta dos anos 2000, as pesquisas com psicodélicos retomam lentamente, até chegarem em 2020, quando ganham pulso novamente. Desde então, podemos destacar como principais acontecimentos:
1. Legalização da psilocibina para uso terapêutico no estado de Oregon, nos EUA
Em novembro de 2020, o Oregon se tornou o primeiro estado dos EUA a legalizar a psilocibina para uso terapêutico em adultos. A medida entrou em vigor em dezembro de 2021 e permite que adultos com 21 anos ou mais acessem a psilocibina em clínicas licenciadas para tratar uma variedade de condições, incluindo depressão, ansiedade e TEPT.
2. FDA concede status de "terapia inovadora" à psilocibina para TEPT
Em novembro de 2021, a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA concedeu status de "terapia inovadora" à psilocibina para o tratamento do TEPT. Essa designação agiliza o processo de desenvolvimento e revisão de novos medicamentos, e indica que a FDA reconhece o potencial da psilocibina para tratar o TEPT.
3. Estudo mostra potencial da psilocibina para tratar depressão
Publicado em 2022 na revista Nature Medicine, o estudo mostrou que a psilocibina ajudou a aumentar as conexões cerebrais em pacientes com depressão.
4. Austrália é o 1º país a aprovar o uso de psicodélicos no tratamento de saúde mental
Em meados de 2023, a Austrália tornou-se o primeiro país a liberar o uso de substâncias como a psilocibina e MDMA (conhecido também como ecstasy), para o tratamento de depressão resistente à medicação e transtorno de estresse pós-traumático, respectivamente.
O que acontece no Brasil atualmente
Apesar dos avanços regulatórios em outros países, no Brasil apenas algumas substâncias são permitidas. Entre elas, está a cetamina (pode ser chamada também de ketamina), uma substância que inicialmente era um anestésico utilizado em cirurgias, mas foi aprovada pela Anvisa em 2020 para tratar a depressão resistente, através de um medicamento de aplicação intranasal. No entanto, seu uso é restrito ao ambiente hospitalar, por exigir a supervisão de um profissional.
Já a famosa psilocibina, originária dos “cogumelos mágicos”, é proibida – exceto quando em contextos de pesquisa. Nesses casos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autoriza centros previamente credenciados e que oferecem ao paciente uma equipe médica experiente para o acompanhamento.
Enquanto isso, a ibogaína é uma das substâncias que segue em zona jurídica ‘neutra’. Ou seja, no Brasil a substância não é legalizada, mas a Anvisa permite que ela seja importada para tratamentos contra dependência química e depressão. Em geral, a autorização de pesquisa da ibogaína é restrita à pesquisa com animais, mas em Junho de 2023 a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), iniciou a busca por voluntários para estudar a substância. Outras substâncias como LSD, ayahuasca, DMT e mescalina funcionam sob os mesmos critérios.
Debruçada sob todo esse cenário está a Scirama Psychedelic Science, a primeira e única startup brasileira com foco em tratamentos psicodélicos e Clínica Beneva, que realiza tratamentos contra transtornos mentais e dependência química utilizando psicodélicos. Mas em um cenário tão restrito, como essas iniciativas conseguem trabalhar?
Como funciona o tratamento com psicodélicos?
Um dos elementos primordiais para pesquisar no nicho dos psicodélicos é o conceito de “set and setting”. “Na área da medicina psicodélica, o ‘set’ é como o paciente é preparado para viver a terapia psicodélica, então tudo o que precisa ser estruturado no paciente para que ele viva aquele processo adequadamente. Já o ‘setting’ é o espaço, o ambiente e os estímulos que ele vai ter durante o processo”, explica Clarice Pires, CEO da startup Scirama Psychedelic Science.
Ela continua, exemplificando a questão: “Quando a gente vai fazer uma terapia na qual o paciente vai ter acesso a essa molécula em doses terapêuticas, pensamos em onde ele precisa estar, qual o formato de segurança ele precisa viver, se vai estar numa sala, com uma cadeira reclinável, se vai usar vendas, receber um estímulo musical e audiovisual, luzes e afins”. Tudo isso é sempre acompanhado de equipes médicas previamente treinadas e prontas para os mais diversos cenários.
Esses elementos tornaram-se protocolos comuns desde a aprovação do uso terapêutico da psilocibina no estado de Oregon, nos EUA, e servem para minimizar possíveis efeitos colaterais (como náuseas, vômitos, tremores, taquicardia ou psicose).
A questão da regulamentação
No Brasil, a regulamentação oficial ainda depende de avanços em pesquisas clínicas. Porém, a expectativa principal gira em torno dos órgãos reguladores de saúde internacionais, que devem registrar a MDMA como medicamento até agosto deste ano. Entre outros anseios, novos estudos devem apoiar a regulamentação da psilocibina e DMT no futuro.
No entanto, o uso da cetamina para o tratamento da depressão refratária ou outros transtornos é possível através do recurso “off-label”, ou seja, se o médico considerar positivo para o paciente – em especial quando se trata de depressão grave, com ideação suicida – a prescrição é permitida.
“A cetamina em si tem indicação anestésica, mas um médico pode tomar decisão e dizer eu vou usar para depressão no meu paciente porque o meu paciente está com uma depressão grave. Eu preciso evitar que aquele paciente morra, então faço a prescrição off-Label. Além disso, existem clínicas hoje no Brasil já estruturadas que fazem a prescrição de infusão de cetamina para tratamento de depressão dentro de um protocolo médico”, explica Clarice.
Nesse sentido, a Clínica Beneva é uma das pioneiras na América Latina e possui três tipos de tratamentos nas clínicas, sendo eles: dois usando o princípio ativo da Cetamina para depressão – seja de forma intravenosa ou com a aplicação do medicamento Spravato, registrado pela Anvisa – e outro
com ibogaína de grau farmacêutico. Realizado em ambiente hospitalar, o tratamento foca na recuperação de pacientes com dependências químicas.
Perspectivas para o futuro
Em geral, fazer tratamentos com substâncias psicodélicas gerava certa desconfiança do público. No entanto, com o avanço das pesquisas e protocolos, a alternativa parece tornar-se atraente o suficiente para que os pacientes façam a adesão por conta própria.
“Quando começamos o projeto, fomos aconselhados por consultores de comunicação para evitar a palavra "psicodélico". Mas, se nós tivéssemos evitado o termo, não estaríamos contando exatamente o que viemos trazer aos pacientes. Nossos protocolos não são apenas uma novidade na psiquiatria, não somos um novo ‘Prozac’. Viemos trazer uma verdadeira mudança de paradigma à psiquiatria e a palavra psicodélico nos ajuda a contar isso. Comunicar isso não é fácil. Claro que isso exigiu um trabalho de educação de nossos pacientes, psicólogos próximos e médicos indicadores”, conta Marco Algorta, CEO da Clínica Beneva.
Algorta continua, afirmando que “hoje, muitos pacientes vêm por iniciativa própria, cansados de anos de maus resultados com os tratamentos clássicos, muitos vêm incentivados por parentes ou amigos e, esse é o número que mais cresce, a maioria vem indicada por médicos que escolhem que seus pacientes sejam tratados com nossos protocolos. É notório o crescimento do interesse da classe médica em nossos tratamentos”.
Por fim, Marco se mostra otimista quanto aos próximos anos. “Com o crescimento que estamos experimentando em nossas clínicas, certamente antes do final do ano abriremos novas unidades. Nos próximos meses, não apenas estaremos atendendo com novos protocolos e em novas unidades, mas também com novas substâncias e possíveis tratamentos médicos inéditos. O futuro já chegou”, conclui o CEO.
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